29 de abril de 2018

Como Dante Alighieri revelou os mistérios divinos e, mesmo assim, escapou da fogueira?

A obra do pensador pernambucano Anco Márcio Vieira explica como Dante, escritor italiano do século XIII, de uma só tacada, elevou ao ápice a literatura de fundo cristão, transgredindo pressupostos teológicos e abrindo caminho para o Renascentismo.



Foto: Cláudio Eufrausino.


Se engana quem pensa que o desafio do escritor é encontrar uma forma de dizer o que pensa. Desafio mesmo é tentar dizer o inexprimível, aquilo que de tão claro e simples parece não caber em palavras. Diante desse tipo de ideia ou sentimento, o escritor tem dois caminhos: recorrer a fórmulas tradicionais ou tentar esculpir novas maneiras de dizer o mundo. 

No livro Dante, a poesia e a forma cristã, o pensador Anco Márcio Tenório Vieira, membro do Departamento de Letras e Teoria Literária da Universidade Federal de Pernambuco, investiga as estratégias literárias do escritor italiano, Dante Alighieri, para construir uma forma de dizer os indizíveis de seu tempo: ou, como destaca Anco, formas de revelar o mundo porque, ao contrário do conhecimento científico que define, a literatura revela. 

A tarefa de Dante, como observa Anco, não foi das mais fáceis. O autor florentino viveu num período em que a literatura era o patinho feio diante da Filosofia e Teologia, que ocupavam o mais alto patamar das ciências. 

Nesta perspectiva, Dante, amparado em pressupostos da Cabala, da Teologia e da Filosofia, legitima a palavra como pista de voo para a poesia, a digressão e a metáfora e não somente como pouso seguro para definições, provas, exemplos e outras categorias consagradas pela tradição escolástica. 

Anco lembra que , como um furacão sutil,  o criador da personagem Beatriz, conferiu um status inédito à literatura, tendo em vista que só a ficção permitiria que o homem comum, ou seja, o próprio Dante, travestido de narrador e de personagem principal da obra, conseguisse um feito impossível até mesmo aos doutores da Igreja: conhecer os mistérios do inferno e do céu pessoalmente sem estar morto (ou estando numa região indefinida entre a vida e a morte). 

"Só a ficcção literária teria o poder de permitir que o escritor professasse tal tipo de conhecimento, fundado no contato direto com os mistérios divinos, e, ainda assim, tendo conseguido driblar a fogueira da inquisição. Foi uma jogada de mestre", ressalta Anco.

Acaba que Dante esculpe uma "forma cristã" de escrita literária, onde a palavra possui diferentes níveis de sentido convivendo num mesmo ecossistema. Assim, no texto de Alighieri,  o sentido poético se senta à mesa junto à Filosofia e à Teologia, elevado ao patamar de uma das modalidades de construção de conhecimento. 

A um só tempo, Dante roteiriza, monta e dirige um "espetáculo" onde os pressupostos filosóficos, teológicos e literários podem contracenar em pé de igualdade. Faz isso com uma perícia que eleva ao ápice a forma literária cristã.  

Porém, à luz desta mesma forma literária cristã, Dante promove uma inversão da filosofia platônica, segundo a qual o conhecimento externo ao mundo, pautado pela lógica divina, seria o único verdadeiro. O personagem principal da Divina Comédia narra memórias de experiências, contatos imediatos de terceiro grau, que abrem espaço para a valorização do conhecimento empirista. A Divina comédia, assim, toca a campainha da morada do Renascimento, preparando o terreno para artistas como Leonardo Da Vinci. 

Desta forma, como descrito em uma das passagens da análise de Anco Márcio, a Divina Comédia se decifra pela verdade dos livros sagrados, mas também de textos apócrifos e esotéricos. E, mesmo com base em tais verdades, Dante produz sentidos diversos, divergentes de algumas dessas verdades teológicas. Estas não o impedem de "tecer considerações pessoais (nem sempre lisonjeiras) sobre episódios históricos (...) sobre as pessoas, as artes e as ciências", pondera Anco. 

Por este motivo, como sintetiza o professor da UFPE, a Divina Comédia representa o domo, o auge literário da cristandade medieval e, ao mesmo tempo, o aceno de despedida, o "canto do cisne de uma era que depositou o mistério da criação em um Deus que dispunha os signos e as coisas com medida, número e peso". 

Durante o lançamento da obra de Anco Márcio, no último dia 26, no Centro Cultural Benfica, perguntei ao autor se a forma cristã ainda encontraria lugar no momento atual. O autor respondeu taxativamente que não. Porém, me pergunto se o "não ter lugar" não pode, à luz dos ventos da poesia, erguer-se, à revelia, como lugar. Afinal, não teria sido esse o grande feito de Dante: construir um lugar clandestino para a literatura no banquete das musas da cristandade, ou seja, a Filosofia e a Teologia? 

Talvez seja esse o grande diferencial da reflexão de Anco Márcio: investigar o lugar que Dante forjou - utilizando, como matéria-prima, o não-lugar (ou entrelugar) poético/ficcional -  no seio da Filosofia e da Teologia, com o objetivo de infiltrar, em terreno sagrado, formas clandestinas de conhecimento do mundo. 

Serviço:  
Dante, a poesia e sua forma cristã. 
Autor: Anco Márcio Tenório Vieira – Editora UFPE – 189 p. 
Prefácio: Eduardo Melo França 

13 de abril de 2018

O 5º mosqueteiro,as muriçocas e o grito do rio Ipojuca no reino de Caruaru




O ataque das muriçocas em Caruaru é digno de causar inveja às pragas do Egito. Mas, o zunido das muriçocas é somente o eco do grito de agonia do rio Ipojuca, que corta a cidade. Este é o assunto do novo vídeo/desabafo do canal Acedia:


1 de abril de 2018

Ressurreição sem vergonha

Foto: Karla Vidal



A morte não pôde Te manter preso
Ela pôde se olhar no espelho quando a tampa do sepulcro pipocou
A morte, tão injustiçada e execrada,
Sentiu-se fazendo sentido

Vestiu-se de ponte
Os brincos eram uma pista de voo
Os ecos das maldições foram despedaçados

A maldição, que parecia beijar teus calcanhares,
Converteu-se em espuma de mar vertido da taça do crepúsculo

Uma voz interrompeu a Páscoa e me mostrou pessoas amadas sendo
Atropeladas por infratores alcoolizados,
Sendo executadas
Estupradas
Banidas de seus países
Muitas crianças feridas, fugidas, antes de aprender o significado da guerra sem sentido

A voz me pediu para ser eleita presidente
E tentou me comprar com um ramalhete de fuzis
De certezas efusivas
E me perguntou: e agora que é com você?

A voz acusou o beijo que ainda darei no meu grande futuro amor
De querer acabar com a família, a honra, com a ordem e o progresso
Com os raios fúlgidos do berço esplêndido

Era uma voz burra, porém convincente

A voz não se contentava de ver os mortos pregados na cruz
E lutava para convencê-los de que morrer não era o suficiente
Para aplacar o nojo que sua existência inspirava
A voz era baixa, porém gritante
E acreditava, impiamente, que, sob sua vigilância,
A blindagem do sepulcro era infalível

De repente o silêncio de Nossa Senhora
Comoveu a rocha sepulcral
E um anjo chamado Metatron
Retirou uma onda de sua bainha
Uma espada que ensinou todas as armas
A desferirem

O salmo 90 dedilhou um acorde nos raios cacheados
De um sol que andava em pé de igualdade com a lua
E um beijo livre para o amor de qualquer maneira
Caiu como uma pétala de luva

A antiga voz, sem se dar conta,
Sorria porque a tampa do sepulcro
Havia descoberto que desde o início
Era reticências sem jamais desde sempre ter sido reticente

Cristo ressuscitado fez todos os estupros,
Homofobias, execuções e guerras desmoronarem

Suas vestes alvinegras respiravam o aroma de seus cabelos,
Cujas mechas eram feitas da luz de reencontros
Pôde a esperança enfim brincar à sombra do inexprimível
Da palavra vulcânica

Ao lado do Ressuscitado, o futuro amor, futuro do presente,
Que não se pode apagar, de graça, me chama

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