29 de dezembro de 2015

Ano Novo e o Capitalismo Utópico



Certamente talvez, me chamem de capitalista utópico, pois acredito que a moeda, em 2016, serão os inquantificáveis: gentileza, atenciosidade, comprometimento (que não é igual a compromisso), Otimismo e Pessimismo autocríticos: coisas que requerem tenacidade e precisam lidar com o risco do fingimento. O não-fingimento, então, será um insumo raro e preciosíssimo. E será necessário se desvencilhar dos delírios da década, a exemplo da ideia de que ser não fingido é dizer tudo, desreprimir-se totalmente de uma só vez e de forma concisa.

Saber quando dizer pouco ou dizer mais um pouco serão especiarias

E, como é sabido por quem bem o sabe, não se chega à terra das especiarias sem passar pelo cabo das tormentas. Mas, em 2016, é líquido e certo que a taxa de câmbio intercósmica fará cada tormenta valer o sétuplo em esperança. Diferente dos condimentos comercializados no século XVI, o calar e o falar no momento adequado são especiarias que não se poderão trocar por escravos.

Aliás, o lastro da moeda de 2016 serão corações livres e, portanto, complicados

O principal papel do Administrador, em 2016, será administrar mal-entendidos suscitados pelo Não, pelo Ainda Não. Pelos tirânicos sempres e nuncas que, secretamente se infiltram em nossos gestos, em nossas Faces, em nossos livros, redes e águas

Poder pensar errado em voz alta será um luxo muito mais acessível em 2016:
Sem que se corra o risco de reduzir tudo que a pessoa pode ser ao seu pensamento,
Ou ao que ela escreve o a qualquer tipo de gesto

A reciclagem de atos, palavras e omissões, sem culpa, fará surgirem muitos novos postos de trabalho no mercado porque quem não tem medo de ser jogado fora: só este abre a sela onde os tabus trancam a criatividade

Será preciso converter em investimento as moedas de 1 centavo dos arrependimentos
Porque a taxa de administração de sentimentos inúteis será altíssima

Dar o troco será perda de tempo porque a reconciliação ofuscará o brilho do ouro
Isso não significa que a prosperidade estará atrelada ao estupro da vontade: falo de reconciliação como quem fala da redescoberta do humano, do perdão que, em vez de apagar o que foi escrito, transforma os textos em palimpsestos. O perdão será, em 2016, uma nova e valorosa camada capaz de aposentar a cal e os sepulcros

A taxa de juros será reduzida a zero porque a sinceridade voltará a valer mais do que as promessas.
Ficar bem na fita passará a ser bijuteria de quinta. Os discursos funcionarão como carros a álcool: será possível começar com contradições, ir aquecendo, adicionando-se poesia e também silêncios, sem ser necessário vergonha, até o veículo dos afetos pegar.

O abraço ajudará a equilibrar o balanço contábil de quaisquer empreendimentos
E as crises serão motivo de alta na bolsa de valores porque estimularão a combinação dos inquantificáveis supracitados, adicionando à lista um bom papo e um porre mediano de tangirosca.

A antiga linha de produção será uma pálida lembrança diante do caminho de paz e de alegria que está por vir. Mais do que o carro ou o AP, as pessoas, em 2016, desejarão encontrar o seu eixo, o seu mar e reconhecer quando têm diante de si a alegria e a paz. Como afirma a fotógrafa Carolina Pires, 
é segurar no leme e ir, reconhecendo nossos mares e amares.

2016 será um ano onde os retalhos costurados com amor revelarão um novo tipo de riqueza: a riqueza caleidoscópica. Como dirá a fotógrafa Karla Vidal, o bom investidor no Ano Novo será simplesmente aquele capaz de descobrir novas formas de olhar. O descondicionamento/reinvenção da visão de mundo será o capital por excelência no ano que está por vir. Confira o esquema abaixo, referente ao investimento rentável no olhar caleidoscópico:



Confira aqui as imago-reflexões de Carolina Pires sobre seu 10 anos como fotógrafa

Confira também aqui a série fotográfica Caleidoscópicas, de Karla Vidal

27 de dezembro de 2015

Início da Restrospectiva 2016

Foto: Cláudio Eufrauisno


Retrospectiva
Por Linav Koriander

Lembrei  do poema que se reeescreve a si mesmo, toda vez que uma pessoa o visita.

Hoje, ele inaugura uma nova fase, tendo em vista que foi reescrito após ter sido visitado por mim mesmo. Meu 2015, que não me pertence, começou em 1980 e nos seus 365 dias couberam 35 anos e seis horas de treiler de vidas passadas nesta mesma encarnação.

Não foi um ano dos mais fáceis, mas aprendeu a me desassombrar. Me pôs de caverna a fora, com Platão e tudo. O espelho dos afetos se tornou convexo e projetou a imagem do amor no aparentemente destronado mundo real.

Desertei heroicamente das guerras ideológicas nas redes sociais

Morri um pouco, na tristeza de franceses e riodoceanos

2015 conseguiu também fugir-me da ditadura venezuelana, que me mantinha sob cativeiro, na capital de Cárdenas, há quatro anos. Se bem que o sequestrador, no caso, era meu próprio afeto afeito à ilusão, moldada em argila invisível.

Foi um ano em que meu eu líder aprendeu a abraçar meu eu subalterno.

Orei menos e amei mais, mas também experimentei mais fortemente o convite ao show da ira: não fui. Preferi encontros breves com a raiva passageira. Estou convencido de que em 2016 não irei à festa dos ódios, pois estou mais cansado de guerra do que Santa Tereza.

2015, deste-me a primeira pessoa que, me olhando nos olhos, disse-me que queria me fazer feliz.

E me deste a chance de encarar isso sem a expectativa de um romance rosa ou de eterno amor: como um gesto que me desreduziu das cinzas. Foi um ato de coragem porque querer fazer feliz este exilado da caverna de Platão não é fácil :). 




24 de dezembro de 2015

Anatomia da Estrela-guia


Caleidoscópica
Foto: Karla Vidal


O amor é capaz de transformar até as pedras em estrelas-guia.

Muita gente não sabe:
A Estrela-guia se move em homenagem às esperanças,
Às lutas e cansaços, e medos-coragem e quedas-reerguimentos que o ser humano mobiliza em sua caminhada

Amamos, nos iludimos,
Em regiões remotas da mente, cogitamos trair, mentir,
E esculpimos palavrões com chamas infernais
E, vez por outra, aquela preguiça de existir

Mas o amor ultrapassa a lama e o caos lançados sobre o rio doce da vida,
Vence as ambições desmedidas
Desmente as maldições
E paga o preço do resgate de nossas decisões

A Estrela-guia anseia por unir o nascimento de Cristo à visita dos reis e dos pastores
Por reconciliar o Não-é-possível e o Amém
O porquê e o Para quê
O silêncio e a canção nova
A queda e o Aleluia

Revelando o poder do amor de vencer as hierarquias e os poderes

Os mal-entendidos não resistirão diante da chegada-retorno do grande Justo
Nesse Natal, a ressurreição e o nascimento de Cristo se encontrarão para fazer Amor
Amor capaz de derrubar os muros de lamento que insistem em se erguer sobre os escombros das guerras

Não está longe o dia em que morarão no mesmo abraço o evangélico e o umbandista
O Hetero e  o Homo
O Céu e o Húmus, o Pão e a Palavra
Alfa e Ômega

Desejo que, neste Natal, a semente do reencontro engravide de coragem para vencer o impossível
Por obra e graça do Santo Espírito, de homens e mulheres

E que as crianças perdidas consigam escapar das terras do nunca
E reencontrem seus pais e irmãos
Pois o reencontro dos que se amam é a Terra Prometida que dispensa qualquer juramento

Está perto o dia em que não será mais preciso Correios e
O Papai Noel poderá tirar férias
Porque todos serão dignos de ter presente, de encontrar um lugar digno na hospedagem do tempo




Pecados de Natal: uma cartinha para o Bom Velhinho

Foto: Cláudio Eufrausino



Cartinha
Por Clistarco Sepúlveda



Resolvi cometer inúmeros pecados esse ano: pelo menos uns dez
Pra conseguir ninar o bom menino que não me deixa acordar em paz

Peco por luxúria interrompida
Será que é pecado o fato de meu olho te desejar ardentemente enquanto meu toque te remete escandalosa ternura tão somente?
Ou o quase infarto de meu abraço quando te encontra por acaso nos becos sem saída do destino

Peco por pedir desculpas por te achar bonito,
Por ter coragem de acreditar que tu achas o quase mesmo de mim

Peco, senhores, por não sentir preguiça de amar
Por marcar e comparecer
Por desmarcar e comparecer
Por não ir e comparecer: em espírito e verdade e meias verdades, tantas vezes talvez


Peço não ter medo de que fujas do meu Eu Te Amo
Ter coragem de acreditar que não tens medo de mim
Deve ser pecado também eu acreditar que posso te amar como quem te admira sempre
E, de quando em vez, dormirá contigo o sono dos que passam a noite em claro


Deixei a Estrela Guia pra ti no Zap e também o primeiro trecho de A Metamorfose de Mim
E pequei por te deixar sem palavras e ficar com raiva por teres somente visualizado a mensagem
Qual a penitência pelo pecado de reescrever a primeira pergunta desse texto:
Será que você é capaz de perdoar o fato de meu olho te desejar ternamente enquanto meu toque te remete caudaloso desejo tão semente?


Peço para começar a experimentar a sensação de não ter medo de me sentir desejado
Para desmentir o adjetivo de louco que afixaram no letreiro da minha luz
Peço, principalmente, para absolver o meu Eu Te Amo


Peco por entender que amar não é uma psicose
E que meu olhar insiste no alvo porque é uma metáfora do meu não desistir do amor
Peco por sair do asilo onde nunca entrei,
E por começar a encontrar o caminho de volta para que meu corpo dance africanamente

Ou dulcemente como uma valsa

Ou ousadamente como um tango entre dois homens, ou duas mulheres,
Ou entre um homem e uma mulher que não fecham as portas à diversidade

Peco por não mais querer sucumbir à repressão da pseudo-virilidade


Peço para acreditar que todos precisam de um bom Bom Dia e de um abraço apertado
E que o agora não começa depois de amanhã


Peco por acreditar que Cristo é um juiz nascido para não julgar
E cujo maior milagre foi mostrar que a existência humana é o verdadeiro milagre

E que dignificar uns aos outros é a ressurreição e a vida
Peço para acreditar (com chuvas ocasionais) quão possível é ao ser humano absolver a si mesmo


  
P.S.:

Pedi à Estrela de Belém de São Francisco que importasse
Dos aperreios de Deus a memória das travessuras do Menino Jesus:
Algum milagre descompromissado com a causa da salvação
Feito só para ver os olhos de Maria brilhando: não pelo milagre,
Mas pela existência de Cristo
Maria agradeceu tanto aos bois por emprestarem sua manjedoura de luxo para

Àquela criança refugiada.

Mas essa é uma outra história...

17 de dezembro de 2015

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Foto: Karla Vidal



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Por oiduálC oicélC


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Indiferença

Solidão

15 de dezembro de 2015

Quando Gregório Duvivier cogitou reativar sua conta no Face: quando percebi em mim sintomas do Fascismo


Cena do filme "Desculpe o Transtorno". Fonte: Folha de São Paulo


Calma, não achem que vou confessar ter sido cúmplice de atentados terroristas ou ataques a pessoas indefesas.

Estamos meio que acostumados a confundir o gesto de assumir a presença do mal em nós com assumirmos que somos o próprio Mal.

Como lembra Walter Benjamin, existem em nós, ao mesmo tempo, uma porta que se abre à redenção e uma porta que se abre ao totalitarismo (e, certamente talvez, a porta da redenção é mais estreita). O pensador alemão alerta (qualquer semelhança com o que Benjamin disse é mera coincidência): “Não ignoremos os gestos do outro, pois um gesto pode ser a porta que se abre para a chegada do Messias [representação alegórica da redenção].”.

Mas, voltemos aos sintomas do Fascismo, nos quais comecei a pensar depois de assistir a um vídeo de uma palestra da filósofa Marcia Tiburi sobre o Fascismo e o vazio do pensamento, do sentimento e da ação na contemporaneidade.

E cheguei a pedir perdão à Virgem por detectar tantas fagulhas de Fascismo em mim. Posto que, tantas vezes, sinto o desejo de cortar de vez o canal de comunicação. Mania de antecipar o que os outros vão dizer e mesmo pensar (se bem que isso, por vezes, é culpa de uma clarividência hereditária que me espicaça).

E cortar a chance de diálogo não tem tanto a ver com o medo da contrariedade ou da surpresa. Tem mais a ver com o receio de não saber o que fazer quando o outro descobre que descobrimos que o controle não nos pertence.

Sinto também vontade de calar como quem tenta fazer do isolamento um protesto antecipado contra uma tentativa de adiar um suposto inevitável: refiro-me ao abandono. É a falta de coragem de lidar com a dor de não ser querido em datas especiais como aniversários, natais, carnavais, sãos joãos, reuniões de acionistas, eleições, velórios... de cair da primeira divisão dos afetos amigos e também dos eróticos.

O receio de só ser querido no tempo do outro meio que me aflige muito, ou, talvez, aflija uma das ilhas da constelação fascista que emerge em mim. Meu amigo Igor estava certo quando me chamou atenção, numa madrugada bêbada às margens da Avenida Rui Barbosa (Recife-PE-Brasil-América do Sul-Terra), para o ditador que eu era capaz de ser. Mas, certamente, no céu do meu ser, as portas do Fascismo não hão de prevalecer sobre as estrelas. Que o Amém diga Anjos!

Outra característica que Tiburi descreve como peculiar ao fascista é não suportar que o outro se divirta e que sua sexualidade o faça ter momentos felizes. O fascista se deliciaria, nessa perspectiva, com o recalque, repressão dos afetos e da sexualidade. Isso porque amor livre implica descontrole, um tipo de anátema aos olhos do totalitarista.

Nisso pude respirar aliviado, sem ajuda de Vick Vaporub, pois a alegria alheia em nada (quase) me perturba. Ocorre que tenho tido medo de ser toda a alegria que posso, toda a ternura que minha potência Jedi é capaz de ser. Como se sorrindo ou abraçando ou dizendo da saudade que sinto ou visitando os outros inesperadamente, eu pudesse ser enquadrado em algum grupo de exclusão, tornando-me vítima dos holocaustos simbólicos que permeiam nossa cultura.

É bem difícil estar inserido em qualquer grupo como um divergente, um híbrido: sentindo-se alvo de olhares que te enxergam ora como digno de pertencer à turma, ora como digno de pertencer ao degredo. Como se os olhares contemporâneos buscassem abrir no outro, ao mesmo tempo, portas de inclusão e de exclusão. E, certamente talvez, a polinésia fascista de minh’alma muitas vezes teme sorrir e prefira pagar o preço ilusório da inclusão reprimida em vez de assumir o risco de dançar a alegre festa dos que assumem sua parcela de marginalidade.

Gregório Duvivier, em um texto recente, expôs as portas de fascismo abertas pelo Facebook. Mas, não esqueçamos as portas de redenção que também são abertas pelas bandas de lá: os reencontros que, fisicamente, seriam inviáveis; os lances de ternura explícita, de infantilidade reoxigenadora, de empréstimo gratuito de experiências e de curadoria recíproca extra-oficial (não só de imagens como de música e poesia). O Facebook, parece-me, também está cheio de gestos que funcionam como portas abertas à emancipação humana. É que as portas podem ser virtuais, mas o abrir e o fechar sempre são de carne e espírito.

No mais, fico feliz de ser capaz de seguir uma importante recomendação de Márcia Tiburi como antídoto ao Fascismo: beijar pessoas do mesmo sexo: não só na face e fora do Face!.



A Igor Bandim, Renata Vieira e Márcia Tiburi e Gregório Duvivier.




Leia aqui a crônica "Adeus, Facebook" de Gregório Duvivier (é preciso ser assinante da Folha, caso contrário, tente ler de alguém que postou o texto-pirata na timeline).







14 de dezembro de 2015

Um poético Foda-se

Fonte: Dygransoft



Foda-se

Por Linav Koriander

Uma mina de indiferença tua estava lá,
Vi, fui e pisei-a
Quem sabe a explosão fizesse teu telefone lembrar de mim
Quis mudar de estratégia e mandar você se danar
Você se foder mesmo (dizem que se palavrões fossem uva, mandar se foder seria um champanha da mais distinta safra)
Mas, o pior é que eu não queria que você se fodesse
Queria que você me...

Desse a chance de saber como é ser sentido falta

Desistir tão facilmente de mim não é nada charmoso
E por que perder a chance de domar meus insultos
E comprovar a tese de que seu cavalheirismo consegue excitar até uma estalagmite (porque as estalactites optaram por se derreter com os raios do teu soslaio)?

Será que só eu fui visitado pelo vírus da saudade?
O único vírus que pede licença para entrar
E nos obriga a sair
Vírus que produz a doença da cura irremediável

Sinto vontade de que nos mandemos embora pra sempre
Só até antes do Natal mais próximo
E experimentar nosso reencontro
Ao som do doce arrependimento recíproco
Desaguando numa atração incontrolável
Como a da Lua que não resiste à frágil força das marés
E se deixa eclipsar, enrubescida
Bochechas ardendo de timidez

A ponto de uma carícia tua,
Uma simples cócega profana
Fazer brotar uma falha geológica
Onde antes era mera planície
Uma falha que traga teu sobrenome
Despida de qualquer santidade

Topa carregar esta futura cordilheira nos teus abraços
E achar o mais alto de mim no nível do mar
Onde o risco de um beijo

Pode ser mais extático que escalar uma queda d’água

8 de dezembro de 2015

Por que Jesus chamava Maria de Mulher e não de mainha?: reflexões sobre a figura da Imaculada Conceição


Foto: Cláudio Eufrausino


Soa estranho quando, ao se referir a sua mãe, Maria, Cristo usa, diferentes vezes, somente a expressão “Mulher”. Algo que pode ser interpretado como um tratamento rude, machista e desdenhoso. Afinal, a cultura nordestina está habituada a reservar às mães títulos mimosos como mainha e, dificilmente, abre mão do pronome Senhora para tratar as progenitoras.

Os evangelhos relatam que, certa ocasião, Cristo foi avisado que sua mãe e seus irmãos estavam a sua procura, havendo indagado ao portador da notícia: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? ”.
Mesmo sem ser teólogo, arrisco-me a dizer sim à tentação de refletir sobre este aparente descaso e grosseria que o discurso de Jesus parece oferecer a Nossa Senhora.

Em um livro poético chamado Ofício da Imaculada Conceição – um texto escrito em latim, no século XV, pelo Frei Bernardino de Bustis – percebe-se que a Virgem Maria é, talvez, a figura bíblica à qual se faz mais alusões. Estas alusões não se limitam a referências pessoais. Abrangem remissões feitas a lugares e a objetos sagrados. Daí, a Virgem ser comparada à Arca da Aliança, à Porta do Céu, ao Trono de Salomão, a uma Cidade guarnecida de Torres, ao Lírio e também a estados corporais, como atesta um dos versos que a chama de “Saúde dos Enfermos”.

Maria é comparada, na obra do Frei de Bustis, a mulheres que tiveram destaque no Antigo Testamento, como Judite, conhecida por utilizar seus encantos para seduzir o rei de uma nação inimiga de Israel. Aproveitando-se do sono profundo pós-gozo do rei, Judite o decapita e, assim, liberta os hebreus da escravidão. De maneira semelhante, Maria consagra sua pureza a Deus, a fim de gerar a salvação do mundo, personificada pelo Messias.

Porém, as duas alusões mais interessantes associadas a Maria são o título de Estrela da Manhã e de Eva.

Estrela da Manhã, ou Lúcifer, era o modo pelo qual era conhecido o Satanás quando pertencia à corte celeste, antes de se tornar um anjo caído. Ao ser chamada de Estrela da Manhã, Maria redime a sombra demoníaca (a estrela caída) e devolve à figura da Estrela a potência imagética, associando-a um novo momento histórico: o nascimento de Cristo.

Maria também é comparada a Eva. Na verdade, ela será chamada de nova Eva, em decorrência de Cristo ser chamado de novo Adão, ou, em outras palavras, do Adão que deu certo, por representar a perfeita aliança entre Deus e o ser humano. Maria também sela a nova e eterna aliança do divino com o humano. “Esmaga a cabeça da serpente” e, por isso, ganha o título de nova Eva, nome que significa “Mãe de todos os viventes”.

É desta comparação de Maria a Eva que se pode extrair o porquê de Cristo chamar Maria de Mulher.
Na boca de Cristo, Mulher se torna um título honorífico. Maria é a Mulher, por excelência, trazendo a graça e as dores de todas as mulheres. Isso porque assumiu o risco de ser uma mãe solteira, foi uma mulher refugiada, como as mães que fogem com os filhos, tentando salvá-los de regimes totalitários. Foi também uma mulher mãe de uma criança perdida e, mais à frente, teve o filho preso e assassinado como as mães de filhos das ditaduras.

Votando ao relato dos evangelhos e à pergunta feita por Cristo: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? ”. Jesus responderá: “Minha mãe e meus irmãos são todos os que seguem a vontade de meu Pai”.

O aparente desdém com relação a Maria esconde outro elogio: a figura de Maria não se resume a um só momento histórico. Ela encontra reflexos nos gestos de homens e mulheres do passado e do futuro, que, assim como ela, assumem o risco de fazer escolhas que permitam nascer o amor e a luta pela emancipação humana.

É uma figura que não fica presa a uma só referência, mesmo que esta referência seja ela mesma. Por isso, Maria de Nazaré assume a feição de inúmeras Nossas Senhoras espalhadas pelo mundo inteiro.

6 de dezembro de 2015

Uma cantada quase pré-feita



Fonte: Labcriativo


Cantada
Por Cerevenise Stür

Passeando pela beira de um abismo, encontrei uma camisa gola polo e puxei conversa

- É lindo esse rapaz dentro de você. Sim, esse mesmo que não vai ter chance contra o meu beijo.

Acanhada, a camisa quis se deixar abotoar até a garganta de seu hospedeiro

Insistente como sou, perguntei:

- Você não poderia dar uma saidinha com esse Jeans antipático
E me deixar a sós com seu refém? Aproveita e desliga também o samba-canção
Pois nos bastarão os silêncios destemidos, de gemidos, os silêncios gêmeos.

A camisa, a calça e o samba-canção estavam apreensivos, pois à beira do precipício
Havia muitos perigos, dentre os quais o frio, a paixão e o principal: o perigo de alçar voo.

Um par de tênis alados fincou pé e não quis nos deixar a sós de jeito nenhum
Não tive saída a não ser colonizar o corpo nu daquele homem semi-precipitado
Isso porque com um breve piscar de olhos, ele revelou que eu era o donatário dos seus sonhos
E que só alguém como eu teria moral para capitanear sua hereditariedade nesta encarnação e na próxima

Aquele moço nu e calçado me disse ter receio de eu não saber
O momento de rezar a prece do ir embora e
E o de cantar a blasfêmia do retornar

Pense num cabra idiota:
Tinha asas nos pés
Um amor à sua frente
E ficava se preocupando com as roupas que partiram
E com os olhares vigilantes do céu e do abismo


Tudo que eu queria era armar uma cama flutuante
Mandar minhas roupas irem ver se a esquina estava lá em mim
E ficar nu em solidariedade à safadeza daquele par de tênis

Nisso, algumas questões me atormentavam:

- Será que dá trabalho transar voando?
- Será que fazia perigo de o orgasmo nos lançar na estratosfera?

- Será que estávamos sendo justos em desligar o abismo com o nosso fazer amor?

3 de dezembro de 2015

Aviso de despejo para Nietzsche, Dostoievski e Schopenhauer

Caleidoscópica
Foto by Karla Vidal


Tire, por favor, Nietzsche, Dostoievski, Schopenhauer e Pessoa do apartamento
Porque quero que estejamos a sós no mais recente capítulo da descoberta de mim mesmo
Não falte nessa festa porque preciso do teu silêncio introspectivo para fazer meu mundo dançar desavergonhadamente
E de nosso segredo para te embriagar, você que é o mais ilustre convidado a em mim penetrar:
Tu e tua sobriedade despudorada

Se estivesse frente a frente contigo numa luta
Trocaria qualquer zanshin por um abraço teu
E que bom seria se você topasse ouvir o quanto te desejo
Sem se sentir obrigado a me amar
Pois o erotismo que se acende em mim quando estás por perto
É acionado por tua liberdade, simplesmente

Não me cansa, duas ou três vezes três vezes por semestre,
Vencer teu impulso de acabar a conversa depois de 10 minutos e ir embora
Levando consigo o ramalhete de avisos prévios

Quero tanto ter a sensação de que minhas mãos, meu olhar e meus encantos
Estão no lugar certo e de que meu Eu te amo não te fará crer tolamente
Que quero fazer de ti um escravo
Mas, certamente talvez, a Lei Áurea seria reassinada por nosso abraço tímido e quente

Parados na esquina, entre a insônia e o acalento, nossos bateres cardíacos dançando de rosto colado
Ensaiando o sono dos justos em fartos clímaxes

E olhar tuas sobrancelhas disputando com teu sorriso o topo no pódio da lindeza
Liberta a angústia e a ansiedade dos meus eus
(Se bem que, tua inteligência faz o segundo lugar ficar o,99999999999999... nanômetros acima do primeiro)

Acho que poderia te amar em segredo a vida inteira
Pra não afugentar teu campo magnético que excita todas as pétalas do meu vórtice
Mas se meu beijo esquimó pudesse dividir o leito com a maçã do teu rosto por um quarto de hora

Meu mar desaguaria no rio, no choro, no sinto, no (re)vivo
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