18 de novembro de 2014

Ato falho e ética jornalística: a reportagem sobre a primeira foto de um ser humano que, segundo o site Mashable, " estava recebendo os serviços de um engraxate"

Fonte da imagem: Mashable.com


A princípio, me empolguei com a “novidade” resumida pela manchete “Primeira fotografia que um ser humano aparece foi tirada em 1838”, publicada no blog Matheusleitao.com.br.

Porém, ao começar a ler a reportagem, qual foi meu espanto ao ler o seguinte trecho:

“O site especializado em tecnologia Mashable publicou nesta semana uma fotografia que, até onde se tem conhecimento, é a primeira em que um ser humano aparece.

Tirada em Paris, França, em 1838, por Louis Daguerre, a pessoa fotografada está de pé no canto inferior esquerdo, na calçada. Parece estar recebendo o serviço de um engraxate, que limpa suas botas.”

E me perguntei: Como assim “a pessoa fotografada parece estar recebendo o serviço de um engraxate, que limpa suas botas”?

Meu espanto se confirmou ao saber que a notícia deriva de uma “original” publicada no site de tecnologia Mashable.com. Na notícia original, o preconceito é mais gritante, pois nem sequer se menciona a profissão do engraxate presente na imagem. Simplesmente se diz que na foto “o ser humano em questão” está tendo suas botas engraxadas. Confira o trecho em inglês:

“This picture, the earliest known photograph to include a recognizable human form, was taken in Paris, France, in 1838 by Louis Daguerre. The human in question is standing in the bottom-left of the photograph, on the pavement by the curve in the road.  He is having his boots shined”.

Este caso aponta para um duplo questionamento ético, relativo à ética jornalística e também à ética do tradutor. Certamente, o jornalismo atual, com suas equipes reduzidas e pressionado pelo mercado, pelo tempo, pela sede humana por crueldade, é um alvo fácil de preconceitos recônditos passíveis de aflorar através de atos falhos como o cometido nas reportagens mencionadas. Arrisco-me a resumir a noção freudiana de ato falho: erro, geralmente expresso em confusões na fala ou na escrita, que resulta do conflito da psique entre o seu compromisso com o consciente e a pressão de conteúdos reprimidos pelo inconsciente. Segundo Freud, o ato falho está dentro dos limites da normalidade, é algo de fácil correção e que não é reconhecido como tal por quem o comete.

Porém, independentemente do atual cenário do Jornalismo, pode-se dizer que a ética sempre foi desafiada por pressões de diferentes ordens. Por este motivo, reconhece-se uma postura ética em momentos cruciais como guerras e calamidades. O ser ético está muito ligado à máxima presente no livro bíblico do Eclesiástico: “É pelo fogo que se provam o ouro e a prata”.

Entenda-se: ao citar a Bíblia não quero igualar ética e moral. Longe disso, pois a independência da ética é que permite à sociedade enfrentar os danos da Moral, quando ela se deixa levar pela inércia e pela intolerância. Ao falar sobre ética jornalística, refiro-me ao cultivo da habilidade de confrontar as certezas do proceder jornalístico com a burrice que - por força da preguiça, comodismo, tédio, arrogância e ansiedade – tende a coroar nossas mais caras certezas. Ética é o questionamento que habita a fronteira entre nossas certezas e nossas incertezas.

Então, ao parafrasear um texto, preciso colocar na mesa tanto as cartas de minhas certezas quanto de minhas incertezas, o que inclui duvidar do que minha certeza me diz. Por força de preconceitos arraigados (dos quais ninguém escapa, nem mesmo Robson Crusoé ou os habitantes da República de Platão), podemos cometer atos falhos como o das matérias mencionadas. Cabe então ao jornalista, revestido pela ética profissional, colocar suas certezas sob suspeita. Isso vale para outras situações como a reprodução do que os entrevistados dizem. As aspas, no texto jornalístico, são um grande atestado de ética. Desafiam o jornalista a retomar um original que nunca mais será de fato o original, pois é filtrado pelos valores do repórter e pelos vazios do esquecimento.

Contudo, o compromisso de ser fiel ao original, por mais utópico que pareça não perde sua validade. Isso porque a utopia - o inalcançável - tem efetividade histórica justamente porque nos impulsiona a rever e questionar os parâmetros do possível, do real.

Ao continuarmos a leitura do texto da Mashable, percebemos que ele caminha para uma revisão do seu infeliz início, ao mencionar que a imagem traz mais pessoas, sendo que elas só se tornariam visíveis por meio da aplicação da ferramenta Zoom à fotografia. De qualquer maneira, tanto no texto em inglês quanto no texto em português, a informação que ganha maior ênfase é atravessada pelo ato falho, que só será abrandado bem mais adiante.

A notícia se deixa pautar pelo ato falho de preconceito e transforma a informação correta num apêndice. Isso gera, inclusive, uma falha de apuração jornalística, pois somente ao final da reportagem (da Mashable), tomamos conhecimento de que a fotografia foi feita de uma rua cheia de gente, mas que a imagem dessas pessoas não foi captada pela câmera.

Bem, independentemente de juízos de valor, as reportagens da Mashable e do blog MatheusLeitao careceram de uma revisão não só textual, mas ética.

Veja os textos publicados

Pela Mashable

Pelo blog Matheusleitao

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