1 de dezembro de 2013

Jogos Vorazes? Aprendendo a fingir com Katniss Everdeen, Daniela Mercury e com o Papa Francisco!



Cena do filme Hunger Games


A personagem principal da continuação de Jogos Vorazes (procurem, por favor, o nome dela no Google e me ajudem a evitar a fadiga) tem um de seus pés calçados por uma interrogação e o outro por uma exclamação.

Da jovem é cobrado um tipo de perfeição que sintetize aspirações coletivas por amor e guerra. Até aí, nada além da manjada fusão entre Coliseu romano, Big Brother e No Limite. Mas, os Jogos Vorazes acrescentam a sua lista de demandas a serem satisfeitas uma aspiração humana demasiado contemporânea, que é a aspiração por estar em dúvida sobre estar ou não diante do fingimento.

Tradicionalmente, o fingimento é listado como pecado, coisa vil, digna de tornar-se arabesco a enfeitar quaisquer dos círculos do Inferno de Dante.

Atualmente, não o fingimento, mas o desafio de definir a fronteira entre o fingimento e a verdade tem exercido fascínio na audiência. Não é de se estranhar, tendo em vista que tanto o fingimento quanto a verdade têm sido encarados como provas de resistência. Num contexto de relativização dos valores, a suspeita está na ordem do dia, e anseia por encontrar alívio, ao cair nos braços de algum herói (?) que tope a empreitada de empunhar a quixotesca (totalitarista?) espada da verdade absoluta ou o risco de escalar a montanha fluida dos relativismos.

Em todo caso, a plateia aguarda ansiosa pela decisão do gladiador/réu/cordeiro sacrificial : “Fingir ou não fingir? Eis a questão!”. Mas, a releitura deste dilema shakespeareano acaba se complexificando, pois, espremida entre as pressões sociais e as da subjetividade (?), a pergunta pode virar algo do tipo: “Fingir que finjo ou Não fingir que finjo?” ou, trazer como bônus natalino da Black Friday uma terceira opção: “Não fingir e fingir que finjo”.

Estes desdobramentos do dilema de Hamlet afligem a personagem principal de Jogos Vorazes. Para o seu amado Gale Hawthorne e para o público em geral, ela jura que o romance que vive com Peeta Mellark, no Reality Show do qual é escrava, é fingimento. Já para Mellark, ela finge que não é amor o que sente por ele. Para si mesma, a “garota em chamas” finge que finge que finge..., lembrando uma das mulheres que Chico Buarque finge ser numa de suas canções.

Dessa forma, a principal armadilha que ameaça a personagem principal da película é a encruzilhada de fingires na qual as circunstâncias a lançam, obrigando-a a fingir que são fingimento até mesmo suas mais caras verdades.

A personagem principal de Jogos Vorazes, vítima da nefasta combinação entre tecnologia, guerra e entretenimento midiático, acaba encontrando no fingir (em diferentes medidas e combinações com a verdade) uma estratégia de sobrevivência. Algo que ocorre com os contemporâneos escravos da fama ou, em outras palavras, as celebridades.

Pensemos no caso Daniela Mercury, que teve a revelação de sua homossexualidade acusada de estratégia para alavancar sua carreira. Supondo-se que esta acusação corresponda à verdade (?), ela se veria pressionada a fingir que seu gesto foi movido puramente por amor. Isso diante do imaginário católico-medieval de que o interesse financeiro é inversamente proporcional ao amor, o que não é de todo verdade, pois não raro grandes empreendimentos, envolvendo interesses econômicos, sustentam-se amparados pelo afeto de relações entre familiares e relações entre amigos.

Pergunto-me se para não ver sua luta política (em combate à homofobia) e íntima (para viver uma relação amorosa não convencional), a cantora não precisou fingir que o mundo dos negócios era uma parcela ausente da questão. Nesta perspectiva, ela não teria mentido, mas fingido, levando-se em consideração que os interesses pecuniários (que, nós comum e erroneamente tratamos como sinônimo de “interesses em geral”) são fato incontornável de nossas trajetórias de vida, mais ainda quando se é uma “celebridade”.

Problemática semelhante envolve as atitudes do Papa Francisco, cujas ações têm sido consideradas, por parte da crítica, um tipo de “marketing franciscano”, estratégia para promover uma Igreja Católica ameaçada de declínio.

O “ser como São Francisco” do Papa Francisco contém fingimento, pois, sem fingir, nenhum ideal resiste ao se olhar no espelho e se ver cercado pelas três "belas" e terríficas sereias: guerra, mídia e técnica.

Como observa o teórico, Harold Bloom, Ulisses era um herói e, como tal, idealista, mas seu idealismo era ferido pela astúcia e, não raro, por um quê de trapaça. Ulisses enganou as sereias, fingindo que o canto delas não lhe podia alcançar, fingiu também que seu nome era “Ninguém” para não ser destruído por Polifemo.

De alguma forma os idealistas, para escaparem da fúria do olhar unidimensional dos valores consagrados pelo status quo, precisam fingir, para ter chance de atuar, mudando minimamente as coisas. Assim, o Papa Francisco, provavelmente, terá de fingir que seu ideal franciscano tem mais força do que nunca, mesmo sabendo que este ideal não conseguirá (ou não quererá ou não poderá, sob o risco de colocar em xeque a sobrevivência do Papa) que o dinheiro dos cofres do Vaticano seja, como esperam os críticos do bispo de Roma, integralmente distribuído aos pobres (o que não seria garantia nenhuma de que a exploração do ser humano deixaria de existir).

O subtexto de Jogos Vorazes mostra que aquilo chamado pela crítica, em tom pejorativo, de fingimento ou marketing, mesmo estando, no mais das vezes,  ligado à hipocrisia, também reflete um esforço do idealismo para desenhar um roteiro de sobrevivência, uma maneira de encontrar espaço para atuar eficazmente em meio ao mar de descrença que tenta se instalar no momento atual e à ameaça de fantasmas do passado como os totalitarismos.

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