29 de dezembro de 2013

O réveillon de Maquiavel no país da conveniência

É preciso ser firme até mesmo para desmoronar,
Pois não vai ser nenhum Eu te amo que convencerá a gravidade
A te desabismar ou te descair

Se o abraço que espero dependesse do convencimento,
O calor humano em vez de um troféu ganharia um trofel
E os italianos em vez de dizer sensibile passariam a dizer sensibílis
Esta noite, vou dormir quase acreditando que a conveniência é mais forte do que a fé
E que meu segredo nunca deveria ser contado
Pois, exposto, ele rouba o lugar que me estava reservado
Ao lado dos que me amam (quando convém)
O segredo peca ao querer o lugar de Judas à mesa da Ceia
Ou, sei lá, quem sabe, a vaga deixada por algum Imortal da Academia
Imortal que, diga-se de passagem, morreu.

Tenho chegado atrasado aos encontros marcados com as horas
Mas, a oração do tempo segue com seu açoite
São torturas diversas, de nomes estranhos
Uma delas, de primeira qualidade, chama-se segundo
E passeia sobre meu lombo – os dentes arquivados nos metatarsos –
Infiltram-se na pele como Marias-Farinhas - devorando pontualmente
Poro por Poro
Ao sabor das conveniências

Que te deixam à margem obcecando o rio caudaloso do sonhesperança
Por ele passam as valsas que querias ter dançado
Os beijos que seriam capzes de quebrar o feitiço que transformou teus lábios
Em um zíper fechado a tristeza
Os abraços que não precisam de abono 
Para sentir tua falta
Ah, Maquiavel,
És também navegador?
Responde por que as ondas vão e vêm
Mas a indiferença não sai do lugar
Com suas pernas de cais
Escala-me os silêncios
Até chegar ao lugar mais alto do pódio: o topo do fundo do abismo

Mas essa tristeza é só por algumas horas, prometo!
Até Maquiavel se despedir
E, cessado o apelo da conveniência que o trouxe chez moi,
Consiga eu acalentar o nojo que meu segredo revelado
Importou, do toque e do olhar dos que me desbuscam,
Para o país da minha inquieta paz



Coluna de Allan Sales - o menestrel do Cariri




21 de dezembro de 2013

Reginaldo Baudelaire Rossi e o doce buquê do "Foda-se"




Tomara que a lembrança de Reginaldo Rossi ajude uma parcela do mundo a sair do estado de coma. E que a inocente falta de vergonha desse pernambucano faça com que as prisões perpétuas de Uganda se tornem jardins de sempre-vivas.

Reginaldo Rossi chama atenção para algo comum no atual estado de coisas, que é o medo de sentir vergonha. E a coisa se agrava porque temos vergonha de sentir medo. E desse jeito, a coragem segue acanhada e tacanha. O brega, reino que foi outorgado a Rossi, é um oásis em meio ao deserto da vergonha de sentir medo de sentir vergonha de sentir vergonha de sentir medo de sentir medo.

Por isso, Reginaldo Rossi, no fim da década de 90, foi uma explosão entre os adolescentes. Foi por tirar o peso que é atribuído, por força de tabus decrépitos, a questões bestas como levar um par de “gaia”. Reginaldo Rossi suavizou, mesmo sem se dar conta, e, sem tomar partido, o rigor tanto de machismos quanto de feminismos e não teve vergonha contribuir para arrancar dos corações a cobrança ancestral de passar a vida na beira do tanque do moralismo, tentando, em vão, lavar a honra, como se a honra ou qualquer outro valor fosse impecável.

A busca contemporânea pela asseptização dos sentimentos, expressa nas fórmulas do “politicamente correto” ganhou, da voz de Reginaldo Rossi, um buquê de doces e delicados “Foda-se”. O sentimento, para o rei do brega, não precisa ser impecável e esterilizado, para nos fazer entrar no Céu.

De alguma maneira, as canções de Rossi servem como música de fundo para a poesia de Baudelaire, em especial aquela do anjo que, ao cair do Céu e perceber que sua auréola ficou toda amassada e melada de lama, olhou pro lado, jogou fora a referida auréola e decidiu aproveitar o resto do dia na pele de um ser humano, com seus amores-imperfeitos, pecáveis, porém amores.

14 de dezembro de 2013

Para que ninguém passe pelo mundo sem mãe ou Olhos de Guadalupe

Foto: E. Vásquez


A Nossa Senhora de Guadalupe

Maria, tu foste criada para que nenhum filho passasse pelo mundo sem o direito de ter uma mãe
Nunca te vi pessoalmente, mas pela tele-visão tu és linda
Ornada com o calor da Galileia, com a poesia do Espírito,
As espadas das profecias te feriram
Mas, teu sim fez o silêncio vencer a dor, a má-vontade e a opressão
E depois de ver teu peito em chamas,
A humanidade entendeu que o coração de uma mulher não foi feito para ser pisoteado por serpente alguma

Teus passos têm pressa pelo deserto, mas nem sempre consegues chegar na hora exata
Porque tu és Senhora, mas, todo dia dizes de novo Sim para o livre arbítrio humano
E, meio que de longe, desde o tempo de Jesus, tu enxergas teus filhos tendo as vísceras arrancadas e o pênis decepado
Levando tiros na cabeça e outros no ânus
Filhos que são arrastados pelo chão asfáltico dos desertos, dos abismos, dos abandonos
E que o ódio, tantas vezes, quer obrigar a comer a própria dignidade até morrer engasgados

Tu não estás só, Maria, pois sempre vai haver um anjo pra te olhar enquanto dormes
E muitos seres humanos querem te abraçar, mesmo depois de saber
Que passas as 70x7 horas do dia abraçando pessoas das quais se tem por “hábito”  ter nojo de tocar com as mãos e até mesmo com o olhar
Se precisares desabafar, podes ligar pra mim, mesmo eu não gostando de atender celular

Tu falas com as crianças quando elas não têm com quem conversar
E, assim, elas aprendem a enxergar além do que é dito
Só tua doçura para abrandar os tiroteios dentro de nossas cabeças
Querida, todas as gerações de damas e cavalheiros gostariam de abrir a porta do carro pra ti
Ou te tirar para dançar
Sei que és tímida, mas graças a tua coragem, até hoje brota ressurreição das cruzes
                                      
O grande amor que parte de ti unge as horas certas e as horas erradas
E no sorriso de Deus moram centelhas dos teus Bom Dia e Boa Noite

Obrigado por abrires passagem para minha ida a Lourdes,
Mãe do direito de sermos humanos e de existirmos humanos
Em todas as Américas, Europas, Áfricas, Oceanias, Antárticas, Ásias e Atlântidas dos Mundos

Com carinho e admiração,


Cláudio Clécio Vidal Eufrausino

Motivações comuns a Marcel Proust e à apresentadora Angélica: Um limão e Meio Limão


Fonte: Sortimentos.com


Sei que, ao escrever esta postagem, corro o risco de as pessoas dizerem que, depois de ter sofrido um acidente de carro, regredi mentalmente. Mas, não se trata disso. Na verdade, o que me levou a escrever foi um sentimento comparável ao que o escritor Proust se refere ao escrever sobre a memória. Antes de mais nada, confesso que não li “Em busca do tempo perdido”, mas, de forma semelhante a Sílvio Santos, dou-me o direito de falar sobre o livro simplesmente baseado na autoridade do “ter ouvido falar”. O que seria de qualquer discussão série e profunda sem os “ter ouvido falar” para alinhavar nossas memórias?

Mas, voltando a Proust, pensei nele e sobre sua reflexão a respeito de como o passado é revivido a partir de memórias aparentemente triviais, como o gosto de um bolinho. Terminei de viajar ao passado, durante uma conversa com a amiga Renata Marques. Ela perguntou simplesmente se eu iria a uma confraternização organizada por outra amiga nossa. A questão trouxe a resposta à minha mente vestida de piada. Foi quando recordei, involuntariamente, de uma música de Angélica, chamada “Eu digo sim, sim, sim, mamãe diz que não”.

Depois, acabei lembrando de outras canções da esposa de Luciano Huck e das  “profundas” letras destas canções. Eis um exemplo:
Eu sei que ele é um tipo
Com ele vou sonhar
Lá vem mamãe dizendo
Que eu tenho que estudar

Só tiro nota dez
É pura ilusão
Não posso entregar
O meu coração

E me pergunto de onde vem a conexão lógica entre “tirar nota dez” e “não poder entregar o coração”.
E segue-se a lista de outras joias raras cantadas pela moça da pintinha na perna:

“Toque toque toque (Bis) Toque violão
Cante, cante, cante (Bis) Cante uma canção”

Bem como:

“Chocolate é gostoso de comer
Chocalate é gostoso de beber
Chocolate eô
Chocolate eô”

E, pra mim, a melhor:

“Um limão e meio limão
Dois limões e meio limão
Três limões e meio limão
Quatro limões e meio limão...”


Mas, como é sabido por quem bem o sabe, nem Angélica nem ninguém é obrigado a viver o tempo inteiro perseguido pelo compromisso de ser profundo ou inteligente. Um pouco de leseira é remédio ótimo para reoxigenarmos o cérebro nosso e o de outrem.


12 de dezembro de 2013

Futur'amor



Fonte: Open4downloads.com




Futur'amor 
Por Cláudio Eufrausino


Meu futuro amor
Eu já o vejo, mais presente que o agora embrulhado pelo papel da evidência
Ele é embaixador no país da minha fé
Com ele sou o que nunca pôde supor meu espelho
O que meus diários não foram capazes de esconder
O que de mim meu epitáfio tentou ser memória, mas falhou.

Ainda não pude achar onde o futuro se esconde
E, antes que eu contasse até  -1, ele já se havia perdido de mim

Mas, meu futuro amor me encontrará
E não terá vergonha do meu silêncio
Da minha tagarelice

Ao lado dele, poderei ter voz e ter silêncio
Sem que eles me sejam uma obrigação, um fardo, uma pena
Dentro dele, não terei vergonha do meu sonho
Nem do meu despertar

Meu futuro amor, ainda não vejo bem seu rosto por trás da névoa
Mas ele é lindo como me faz ver o sol do seu mistério.

8 de dezembro de 2013

Presente de Natal de Rita Lee, Nara Leão e Georges Moustaki para São José e Nossa Senhora

Rita Lee, vestida de Nossa Senhora, durante show em 1995


À amiga Hozana, que conheci em viagem à França e que me acompanhou em visita a Notre Dame e à Capela de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa


Ela é uma canção bastante conhecida, em sua forma instrumental no ritmo de samba, tocada em shoppings e outros estabelecimentos comerciais no período natalino. Não me refiro a Jingle Bells, mas sim a Meu Bom José. Gravada em 1970, foi o primeiro sucesso solo de Rita Lee.

A música é uma versão de Nara Leão para Mon Vieux Joseph, de autoria do egípcio, naturalizado francês, Georges Moustaki, cujo nome de batismo era Giuseppe Mustacchi. Ele faleceu este ano no mês dedicado pela Igreja a Maria, isto é, maio.

A balada fala sobre a paixão de José por Maria e como essa paixão o fez abrir mão de uma vida morna e pacata por outra na qual teve de enfrentar o exílio e presenciar o início do cumprimento da profecia de Simeão, segundo a qual Maria teria seu peito atravessado pela dor por conta das ideias de seu filho Jesus, que contrariavam a estreiteza das ideias vigentes.

Poucos anos depois, Rita Lee fez outra música chamada De Novo Aqui Meu Bom José, onde tenta fazer uma crítica social à condição de miséria à qual estavam sujeitos os “Zés” e as “Mariazinhas” trazidos para São Paulo pelo êxodo rural.

Sendo hoje dia de Nossa Senhora da Conceição, faço aqui também minha homenagem, lembrando da recente visita que fiz ao Santuário da Imaculada Conceição, em Lourdes (França). Perguntaram-me qual foi minha sensação ao chegar lá. Respondo que, primeiramente, tanto meu corpo quanto meu coração ficaram frios, como se minha vida tivesse medo de estar presente ali e assumir a emoção que aquele momento significava.

Afinal, uma sensação de desilusão vinha me perseguindo de perto nos últimos meses e eu ainda não tinha me dado conta de que realmente tinha sobrevivido a um grave acidente de carro, do qual alguns que me são próximos chegaram até mesmo a duvidar, visto que não sofri nenhuma mutilação nem fiquei em estado de coma.

Mas a presença da vida foi entrando em cena no meu coração bobo e lembrei de mim aos 9 anos de idade lendo diversas vezes um livro ilustrado que resumia a história da aparição de Nossa Senhora de Lourdes a Santa Bernadete, cujo corpo incorrupto tive também a chance de conhecer ao visitar a cidade de Nevers.

Quando essa criança chegou em mim e pediu a palavra, senti que muitas de minhas memórias estavam cicatrizando e que não só meu corpo tinha sobrevivido ao acidente.

Tive a chance de ficar sozinho na gruta de Lourdes e cantei para ela e depositei numa urna, aos olhos da Virgem, o nome de amigos queridos e de alguns que, contra a minha vontade, se fizeram meus desamigos.

Depois, enfrentei o desafio de descobrir como abrir as torneiras que vertem a água benta proveniente da fonte de Lourdes. As pessoas que ganharam desses vidrinhos de água benta podem se sentir muito amadas, porque quase perdi os dedos enchendo as garrafinhas e molhando as mãos naquele frio de rachar.

Lembro também de que foram chegando peregrinos de diferentes línguas. Fui fotografado por falantes de espanhol que, creio eu, eram sul-americanos. E me senti abraçado por Nossa Senhora quando estas pessoas sorriram pra mim, fazendo minha fé, por algum tempo, perder a vergonha de ser convidada para o baile de formatura.


Nossa Senhora dos homens e das mulheres 

Te vi, Maria, conversando com um ateu
E o coração dele era lindo, e ele batia o maior papo contigo
Achando que falava com seus próprios botões
Mas, ele nem percebia que o amor que trazia
Fazia seus botões desabrocharem em rosas
E tu as recebias de presente, Mãe
E retiravas das costas de Eva o peso de um mundo macho
E devolvias à natureza o direito de ser dos homens e das mulheres
E das mulheres e dos homens
E dos homens
E das mulheres
E da boa-vontade
Fonte: Downloads Wallpapers

Abençoa o meu amor, Maria
Assim como foi bendito o amor de José
Que não buscou aprovação do olhar alheio
Mas de teu olhar: ei-lo, o mesmo olhar que
Ajudou Cristo a segurar o fardo das fúrias dos homens e das mulheres
Dos homens e mulheres
Das mulheres
Dos homens
E da boa-vontade

Para ti, ó Mãe,
O vestido mais lindo, a lua mais desobrigada
O mar onde todas as correntes sejam, enfim, quebradas
Que todas as hospedarias sejam pra ti de incontáveis estrelas

Cuja respiração é o declínio da indiferença e o afogamento das guerras


Meu bom José - Rita Lee


Mon vieux Joseph - Georges Moustaki

7 de dezembro de 2013

Quem nunca roeu atire a primeira pedra: o filósofo Edmund Husserl roía ao som de Fábio Jr

Fonte: Revista Public First Class


Um dicionário me jurou de pés juntos que a expressão roedeira tinha origem no nome popular de uma epizootia (enfermidade contagiosa que ataca um número grande de animais ao mesmo tempo) do gado bovino, que determina a queda dos chifres. Roedeira é o mal-dos-chifres. Mas, ao ser incorporada, no repertório nordestino, com o significado de sofrer por amor, essa palavra não acompanhou seu sentido veterinário, pois não só aqueles que foram vítimas de uma traição conjugal (levaram chifre) têm direito a padecer de roedeira.

No universo web, já é possível encontrar teorias sobre a roedeira, dizendo, inclusive, quem deve roer, como e quando, além de ser prescrita medicação para a cura deste mal. Se bem que, de acordo com as teorias existentes, existe, assim como acontece com o colesterol, roedeira da boa e da ruim.

Minha parcela de contribuição para o avanço dos estudos científicos sobre a roedeira: roer é um momento de suspensão dos juízos ou certezas, algo comparável ao que o filósofo Edmund Husserl chama de epoché, termo que vem do grego e significa “colocar entre parênteses”.

Quem está roendo não está preocupado com dogmas, convenções e verdades institucionalizadas, a exemplo de noções de bom-gosto, etiqueta, bom-senso e razoabilidade. Mas, entenda-se que suspensão dos juízos não significa um mergulho no absurdo, mas sim um aval temporário para que o convencional e anti-convencional, o razoável e o desarrazoado, se misturem. Creio que a roedeira é ferida pelo sincretismo.

Porém, é EVIDENTE que a roedeira não abre caminho para a violência ou mesquinharia, visto que estes estão associados à premeditação. Já roer é algo ferido pelo laisse-fare/laisse passer, sem, contudo, dar à mínima para as leis de mercado. Daí, a pessoa que está roendo abrir mão de se preocupar com a complexidade e a proporção estéticas. Quem está roendo também não vai se preocupar se o cobertor que afaga suas dores é uma música de Fábio Jr ou de Chopin; ou se é um livro de Paulo Coelho ou de Machado de Assis.

A roedeira é um sarau onde os artistas se despem das convenções e se permitem vasculhar a região silenciosa onde seus sentimentos se tocam. Numa época em que a expressão cultural vem sendo encarada como um espécie de visto que permite ou não que ingressemos em terras estrangeiras – sejam estas terras países ou as próprias pessoas – a roedeira é um tipo de território neutro, algo como costumava ser a Suiça, quando a Europa estava em guerra.

No blog Qualquer Coisa de Triste, achei uma definição legal para o termo roedeira. Roedeira é o instante em que a suspeita sobre a capacidade de amar abre caminho para amar o amor. E, durante essa espécie de transe, uma doce anarquia coloca entre parênteses os poderes executivo, legislativo e judiciário.

3 de dezembro de 2013

Feliz Ano Novo antecipado


Foto: Thibault Camus/AP



Poema de Feliz Ano Novo Antecipado

Dezenas de sóis adolescentes contracenam com minhas cicatrizes
E como elas atuam mal!
Por mais que se esforcem, não conseguem disfarçar que são feridas ind’abertas
Na volta e na ida

A espera preferiu pegar no sono
E, assim, talvez, achar uma forma de não sentires vergonha de me carregar nos braços
Então, demiti a eternidade
Para que não tivesses medo de ficar comigo e te tornares algum tipo de refém,
Obrigado
Por nada

Tu me dóis quando não me dás espaço para te fazer feliz
Mas quando teus poros banhados de suor e abraço e despudor e gentileza
Invadem meu sonho,
Acampam no meu corpo astral,
E nele constroem uma onda de alegria que me percorre, como um rio, 
E sinto tua boca desaguando em cada trincheira
Erguida pelos arrepios impiedosos esculpidos
Desde a nuca, desarmando todos os nunca mais

E quero mais desses carinhos que tramam o por-de-sol da dor
E reduzem a cinzas toda falta de horizonte

Desejo que para o último dia deste ano,
Teu lábio aprenda no meu a não se perder na contagem regressiva
E teu silêncio entrelace-se ao meu e se torne uma chuva de fogos,
Que abrem mão de qualquer artifício
Para vestir de Ano Novo os sorrisos
E de mar límpido teu doce olhar
Pois, se estiveres comigo
Aposentarei a adolescência

E o sol poderá ser luz sem precisar esconder as marcas do tempo

1 de dezembro de 2013

Jogos Vorazes? Aprendendo a fingir com Katniss Everdeen, Daniela Mercury e com o Papa Francisco!



Cena do filme Hunger Games


A personagem principal da continuação de Jogos Vorazes (procurem, por favor, o nome dela no Google e me ajudem a evitar a fadiga) tem um de seus pés calçados por uma interrogação e o outro por uma exclamação.

Da jovem é cobrado um tipo de perfeição que sintetize aspirações coletivas por amor e guerra. Até aí, nada além da manjada fusão entre Coliseu romano, Big Brother e No Limite. Mas, os Jogos Vorazes acrescentam a sua lista de demandas a serem satisfeitas uma aspiração humana demasiado contemporânea, que é a aspiração por estar em dúvida sobre estar ou não diante do fingimento.

Tradicionalmente, o fingimento é listado como pecado, coisa vil, digna de tornar-se arabesco a enfeitar quaisquer dos círculos do Inferno de Dante.

Atualmente, não o fingimento, mas o desafio de definir a fronteira entre o fingimento e a verdade tem exercido fascínio na audiência. Não é de se estranhar, tendo em vista que tanto o fingimento quanto a verdade têm sido encarados como provas de resistência. Num contexto de relativização dos valores, a suspeita está na ordem do dia, e anseia por encontrar alívio, ao cair nos braços de algum herói (?) que tope a empreitada de empunhar a quixotesca (totalitarista?) espada da verdade absoluta ou o risco de escalar a montanha fluida dos relativismos.

Em todo caso, a plateia aguarda ansiosa pela decisão do gladiador/réu/cordeiro sacrificial : “Fingir ou não fingir? Eis a questão!”. Mas, a releitura deste dilema shakespeareano acaba se complexificando, pois, espremida entre as pressões sociais e as da subjetividade (?), a pergunta pode virar algo do tipo: “Fingir que finjo ou Não fingir que finjo?” ou, trazer como bônus natalino da Black Friday uma terceira opção: “Não fingir e fingir que finjo”.

Estes desdobramentos do dilema de Hamlet afligem a personagem principal de Jogos Vorazes. Para o seu amado Gale Hawthorne e para o público em geral, ela jura que o romance que vive com Peeta Mellark, no Reality Show do qual é escrava, é fingimento. Já para Mellark, ela finge que não é amor o que sente por ele. Para si mesma, a “garota em chamas” finge que finge que finge..., lembrando uma das mulheres que Chico Buarque finge ser numa de suas canções.

Dessa forma, a principal armadilha que ameaça a personagem principal da película é a encruzilhada de fingires na qual as circunstâncias a lançam, obrigando-a a fingir que são fingimento até mesmo suas mais caras verdades.

A personagem principal de Jogos Vorazes, vítima da nefasta combinação entre tecnologia, guerra e entretenimento midiático, acaba encontrando no fingir (em diferentes medidas e combinações com a verdade) uma estratégia de sobrevivência. Algo que ocorre com os contemporâneos escravos da fama ou, em outras palavras, as celebridades.

Pensemos no caso Daniela Mercury, que teve a revelação de sua homossexualidade acusada de estratégia para alavancar sua carreira. Supondo-se que esta acusação corresponda à verdade (?), ela se veria pressionada a fingir que seu gesto foi movido puramente por amor. Isso diante do imaginário católico-medieval de que o interesse financeiro é inversamente proporcional ao amor, o que não é de todo verdade, pois não raro grandes empreendimentos, envolvendo interesses econômicos, sustentam-se amparados pelo afeto de relações entre familiares e relações entre amigos.

Pergunto-me se para não ver sua luta política (em combate à homofobia) e íntima (para viver uma relação amorosa não convencional), a cantora não precisou fingir que o mundo dos negócios era uma parcela ausente da questão. Nesta perspectiva, ela não teria mentido, mas fingido, levando-se em consideração que os interesses pecuniários (que, nós comum e erroneamente tratamos como sinônimo de “interesses em geral”) são fato incontornável de nossas trajetórias de vida, mais ainda quando se é uma “celebridade”.

Problemática semelhante envolve as atitudes do Papa Francisco, cujas ações têm sido consideradas, por parte da crítica, um tipo de “marketing franciscano”, estratégia para promover uma Igreja Católica ameaçada de declínio.

O “ser como São Francisco” do Papa Francisco contém fingimento, pois, sem fingir, nenhum ideal resiste ao se olhar no espelho e se ver cercado pelas três "belas" e terríficas sereias: guerra, mídia e técnica.

Como observa o teórico, Harold Bloom, Ulisses era um herói e, como tal, idealista, mas seu idealismo era ferido pela astúcia e, não raro, por um quê de trapaça. Ulisses enganou as sereias, fingindo que o canto delas não lhe podia alcançar, fingiu também que seu nome era “Ninguém” para não ser destruído por Polifemo.

De alguma forma os idealistas, para escaparem da fúria do olhar unidimensional dos valores consagrados pelo status quo, precisam fingir, para ter chance de atuar, mudando minimamente as coisas. Assim, o Papa Francisco, provavelmente, terá de fingir que seu ideal franciscano tem mais força do que nunca, mesmo sabendo que este ideal não conseguirá (ou não quererá ou não poderá, sob o risco de colocar em xeque a sobrevivência do Papa) que o dinheiro dos cofres do Vaticano seja, como esperam os críticos do bispo de Roma, integralmente distribuído aos pobres (o que não seria garantia nenhuma de que a exploração do ser humano deixaria de existir).

O subtexto de Jogos Vorazes mostra que aquilo chamado pela crítica, em tom pejorativo, de fingimento ou marketing, mesmo estando, no mais das vezes,  ligado à hipocrisia, também reflete um esforço do idealismo para desenhar um roteiro de sobrevivência, uma maneira de encontrar espaço para atuar eficazmente em meio ao mar de descrença que tenta se instalar no momento atual e à ameaça de fantasmas do passado como os totalitarismos.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...