16 de junho de 2013

A complicada fronteira entre amor e obsessão trabalhada pelas artes

Taça-crânio, de Lord Byron


Na narrativa de Saint Seiya, a deusa Atena é perseguida pelo restante do panteão grego por ser considerada uma obsessiva. Motivo: compartilhava dos valores do Romantismo, como a ideia de tirar um dia na semana para amar sem querer algo em troca ou acreditar que a humanidade não deva ser destruída: oferecida em sacrifício em homenagem a Malthus.

Os demais deuses, em particular Hades, acham que os seres humanos devem ser destruídos e que se deva criar uma nova humanidade do zero ou, melhor ainda, que o cosmos passe a ser habitado somente pelos deuses num apoteótico rendez-vous.

Por trás da ficção, um conflito ideológico que assola a contemporaneidade “dos dias de hoje”: ser o plausível ou ser o sensível. Certamente talvez, estas não são opções mutuamente excludentes, mas, muitas vezes, têm sido tratadas como se o fossem. Neste caso, considera-se plausível não ser sensível ou, considera-se que o amor e seus derivados são distúrbios enquanto fechar-se em si mesmo seria razoabilidade.

De qualquer forma, os limites entre o sensível e o plausível são matéria-prima indispensável para as artes e a literatura. Nesta postagem, veremos alguns casos em que a arte explora, ora com humor, ora com seriedade, o conflito entre obsessão e razoabilidade, tendo o amor como fio condutor desta “disputa”.


Romeu e Julieta - Emblema máximo do conflito entre amor romântico e obsessão



Dalida - Bang Bang


Nancy Sinatra - Bang Bang


No mito,  temos Narciso e Eco, Cupido e Psiquê
Narciso y Eco, pintura de John William Waterhouse

Selena Gomez – Humor noir e cáustico para abordar a questão do momento em que o amor romântico descamba para a obsessão

Clarice Falcão e sua Monomania também levam para o lado do humor a tendência contemporânea de considerar os gestos de amor como distúrbios obsessivos


Piaf 



Razão e Sensibilidade – baseado no livro homônimo de Jane Austen. Trata com leveza as fronteiras entre estes dois sentimentos, buscando os momentos em que tais fronteiras se tornam borradas. Pela milionésima vez sou levado a citar Gramisci, para quem não há sequer a razão. Para o pensador, a razão seria uma paixão tão intensa que abriria mão de sua própria chama em nome de seus propósitos.

A escrita de Haroudo Xavier, no blog Devoras, aproxima RPG, literatura Fantástica e cultura Cyber Punk e mistura tempos "díspares" como Idade Média e Grécia Antiga para falar sobre o diálogo entre amor e obsessão.

O Único Jogo

"No, I don't wanna fall in love
No, I don't wanna fall in love
With you"
- Wicked Game, Chris Isaak

O sorriso fácil, a voz doce.
Era tudo tão óbvio.
Ela jogava com as peças brancas, sem sequer estar definido o jogo.
E4.
Ela sentou-se na mesa com uma amiga.
Elas sequer olharam para mim. Mas tudo começa assim, ninguém conhecendo ninguém.
C5
Não sou tão fácil, acho. Sento próximo, mas não olho para ela. A amiga, essa é a presa. Ela, ainda sem olhar para mim, conversa com a amiga, distraindo-a. C4
Chamo o garçom, falo alto.
Ela olham.
Me arrisco, mas o jogo realmente começa.
F6, E5
Olho para ela. Prestam um mínimo de atenção, e voltam a sua conversa.
Não vai ser uma noite fácil.
E6, Qh5
O garçom chega. Decido forrar o estômago, peço uma comida antes da cerveja.
Tento escutar o que elas conversam. Ligo para um amigo, não quero ir ali solo.
G6, exF6
- Fala, Cabra - Béé! - Tudo bem, Eric? - Tudo, e aí? - Aí que to vendo duas gatas. Mas não quero chegar sozinho, e aí? - Não dá, Roberto. Celina tá vindo aqui hoje. - Beleza, beleza. Até mais então. - Até, boa sorte aí. O destino jogou por ela. Qxf6, Nc3
E mal.
Percebo quando ela me olham ao telefone, mas, tenho certeza, não me escutam.
Ainda estou no jogo.
Gxh5, Nce2
Vou abrindo o jogo.
Olho para a loira. Mas sempre, sempre preferi as morenas.
A minha comida chega e peço a cerveja, e percebo, agora ambas olham.
Bh6, Ng3
Há uma dança de olhares, sem posições fixas.
Há uma certa confusão, cada um se protegendo como pode.
Qh4, a4
Elas comem e bebem.
Minha cerveja chega.
Outros homens também olham para elas. Eu devia ter notado eles antes, fui amador.
Agora, tenho de ter paciência. Ou não. Estou confuso.
Maldito Eric.
Nf6, a5
Há muita gente jogando, cada um se guardando.
A banda começa a tocar.
b6, d3
Me arrisco. Me levanto e vou até lá.
Os caras olham, eu os ignoro.
A meninas me olham com alguma expectativa.
0-0, Nxh5, Nxh5
- Tudo bem? Posso sentar com vocês?
Meu melhor sorriso, a voz adestrada, o olhar com grau certo de interesse e até, fome, mas sem exageros.
- Pode.
A loira diz, fingindo desinteresse e cortando a morena, que sei, ia rejeitar.
Nh3, Kg7
É um momento difícil. O cotidiano que tem de ser interessante.
A luta contra o som alto.
E ouvir, ouvir. Sempre ouvir.
axb6, Nc6
Elas são simpáticas. A morena, vai cedendo.
Talvez seja a bebida, talvez seja eu.
Mas nesse jogo, não sou de contar as bênçãos.
Be2, Kg6
Ambas são bonitas, inteligentes.
A loira mora perto. A morena, não, mas eu moro.
A noite desliza, suave entre os sorrisos.
Bxh6, Kxh6
Ambos fazemos concessões.
Uma verdade aqui, outra ali, em meio aos disfarces, as máscaras.
Elas sabem onde moro, que tenho um filho, minha idade, alguns gostos.
E vou, devagar, avançando.
Rxa7, Nxa7
É um jogo ganho, sem surpresas.
A loira vai ao banheiro. A morena, quase vai.
Discreto, pego sua mão. Ela fica.
O beijo só termina quando a loira senta.
Nf4, Nxf4
Conversamos mais.
A loira, esta visivelmente decepcionada.
A vela queima a mão.
Lembra de um compromisso, nos deixa a sós.
Bd1, Nxg2
A morena é linda.
Com ou sem óculos.
Com ou sem roupa.
Com ou sem... Tudo.
Kf1, Qxf2
Cheque-Mate.
Mas me arrependo.
Tanto esforço, para ganhar e só agora percebo.

Quem ganhou, foi a Rainha.

Procurando Nemo – Clássico infantil, que também brinca com as fronteiras entre insistência e desistência que tornam nebulosos os limites entre procura e obsessão.

Em Algum lugar do Passado – Um filme (também livro) que acrescenta ficção científica ao conflito entre amor romântico e obsessão

Pollyana – O jogo do contente é uma forma sutil e requintada de pensar a relação entre obsessão e amor. Pollyana  é obsessiva, mas sua obsessão, estranhamente trabalha para que suas “vítimas” sejam livres.

O Pequeno Príncipe – O triângulo amoroso Pequeno Príncipe, Rosa e Raposa reflete, de maneira alegórica, sobre a dança dos lugares no conflito entre razão e amor. Em relação à rosa presa numa redoma, o Pequeno Príncipe pode ser considerado “obsessivo”.  O jogo se inverte, porém, quando pensamos na relação entre o Príncipe e a Raposa.


Vestígios do Dia – Soma-se ao debate sobre as fronteiras entre amor e razão, o debate sobre a relação entre satisfação e covardia, entre sentido e conveniência. O filme (que também deriva da literatura) trabalha a pergunta-limite: É possível viver a vida sem sentimento?, que pode ser feita de outra forma: É possível viver sem abrir mão do sentimento?

I will love again (Lara Fabian) –  Caso clássico  onde  o repertório do amor romântico pode ser confundido com o repertório da obsessão


Serge Gainsbourg, Roberto Carlos e Julio Iglesias falam por si mesmos

Na pintura, a fronteira entre o amor obsessivo e o amor romântico perpassa toda a história, indo da pintura sacra à pintura “pós-contemporânea”.


Na escultura, um bom exemplo é a “maldita” Camille Claudel


Na poesia, podemos citar Byron e García Lorca

Gazela del amor desesperado - Lorca

La noche no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
aunque un sol de alacranes me coma la sien.

Pero tú vendrás
con la lengua quemada por la lluvia de sal.

El día no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
entregando a los sapos mi mordido clavel.

Pero tú vendrás
por las turbias cloacas de la oscuridad.

Ni la noche ni el día quieren venir
para que por ti muera
y tú mueras por mí.


Byron - A uma taça feita de um crânio humano - (tradução de Castro Alves: Bahia, 15 de dezembro de 1869)

Não recues! De mim não foi-se o espírito…
Em mim verás – pobre caveira fria –
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!… que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais vale guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
– Taça – levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do réptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
…Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida
Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p’ra alguma coisa!…

Byron - Lines Inscribed Upon A Cup Formed From A Skull

Start not – nor deem my spirit fled:
In me behold the only skull
From which, unlike a living head,
Whatever flows is never dull.

I lived, I loved, I quaffed like thee;
I died: let earth my bones resign:
Fill up – thou canst not injure me;
The worm hath fouler lips than thine.

Better to hold the sparkling grape
Than nurse the earthworm’s slimy brood,
And circle in the goblet’s shape
The drink of gods than reptile’s food.

Where once my wit, perchance, hath shone,
In aid of others’ let me shine;
And when, alas! our brains are gone,
What nobler substitute than wine?

Quaff while thou canst; another race,
When thou and thine like me are sped,
May rescue thee from earth’s embrace,
And rhyme and revel with the dead.

Why not – since through life’s little day
Our heads such sad effects produce?
Redeemed from worms and wasting clay,
This chance is theirs to be of use.



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