14 de abril de 2013

O dia do beijo e a fobia dos gestos

Cena do filme "Meu Primeiro Amor"




Certa vez, fui advertido de não andar por aí fazendo o sinal de positivo com a mão. Ei-lo:


Disseram-me que, em certas regiões do Oriente, este gesto era considerado um insulto digno da pena de morte.

Esta observação e o fato de ontem ter sido dia do beijo me fizeram pensar sobre o significado do gesto e sobre ele tecer algumas considerações intempestivas e, certamente talvez, sem importância. Será minha homenagem a Horácio que disse que devíamos ter cuidado ao escrever, pois o que estava escrito não podia ser apagado.

E, desde então, Horácio tem uma súcia de seguidores dispostos a dizer quem deve ou não escrever, assim como Feliciano tem uma súcia de seguidores dispostos a dizer quem deve beijar, quem deve ser considerado pessoa.

O gesto, por mais reconhecível que seja, é irrepetível: impressão digital do tempo.

É a mão que se faz presente ou ausente no resgate de quem está prestes a cair no precipício. O silêncio sempre terá algo a dizer porque é mais fácil Adão e Eva decidirem voltar a andar nus do que as ações humanas serem capazes de se despir do gesto.

A medicina evoluiu tanto, mas as pessoas continuam associando o gesto ao sinete que anunciava, na Idade Antiga, a chegada dos leprosos.

Um olhar desavisado pode ser encarado como uma lepra capaz de atingir seu alvo como míssil teleguiado. Um toque inesperado pode, de repente, significar uma declaração de guerra, capaz de fazer com que as violas sejam substituídas por fuzis AR.

A fobia dos gestos tem a ver com uma falha no “mecanismo enzimático” que permite ao ser humano atual distinguir a esfera pública da privada. A confusão cresceu a tal ponto que o presidente dos direitos “humanos” do Brasil arregimentou um exército de sentinelas para vigiar os pórticos do cu alheio.

Estacionei o carro, andei dez passos. No meio do caminho tinha um segurança que cuidava da entrada de um restaurante. Lembrei ter esquecido o celular no carro. Retornei onze passos. Tinha um segurança no meio do caminho. Dessa vez o cumprimentei, olhando-o nos olhos. Ele disse que o fato de eu regressar, olhar para ele e abrir a porta do carro, gerou nele a sensação de que eu fosse tirar uma arma para matá-lo...  

Hã?

Regresso + olhos nos olhos + porta do carro aberta = tentativa de assassinato?

O que Lèvinas pensaria sobre esta bizarra combinação linguística?

No meu tempo, regresso + olhos nos olhos + porta do carro aberta = matar a saudade.

O farsante sinete que antes era colocado nos leprosos continua tocando na tensão muda que antecede os gestos. Diante da pressa e da precipitação, tem-se escolhido fazer dos gestos uma espécie de “detector de caráter” e nós, tolos contemporâneos, “brincamos” de mímica e fazemos dos gestos motivo para condenar o outro a morte, mesmo que esta morte seja destilada, paulatinamente, no espírito alheio.

O beijo descende do gesto das mães, de várias espécies animais, de transportar água e alimento para os filhos. Foi considerado um escândalo quando apareceu no cinema pela primeira vez em 1896. De lá pra cá, é considerado ora um gesto puro de amor, ora uma perversão (como na polêmica acerca do beijo entre pessoas do mesmo sexo em locais públicos).  De todo modo, o beijo é um selo. Ele pressupõe uma correspondência que, ao alcançar seu destino faz os que se beijam perderem seus endereços, sem direito a AR (aviso de recebimento).

As fronteiras dos estados nacionais têm cedido lugar às fronteiras dos gestos, encarados como divisores entre o eu e o nós, ou entre o "Nós, sim!" e o "Vocês, não!".



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