16 de fevereiro de 2013

O debate sobre a homofobia e o sono de mil anos da Bela Adormecida





Visitei dezenas de farmácias na Terra dos Contos de Fada e constatei que estava em falta o remédio que permite burlar o teste do bafômetro. Mais grave: estava em falta o remédio que proporciona o sono de mil anos. Pensei com meus remendos: Putz, vou dar uma passadinha no castelo da Bela Adormecida. Quem sabe não a encontro acordada pra gente bater um papo...

Foi tiro e queda, carinho e reerguimento! Ela estava lá acordada e tentando pela quingentésima vez concluir o curso de costura, on line, oferecido pelo Instituto Universal Brasileiro...

No meio da conversa, começamos a falar sobre o debate que estava mais na crista da onda que Garret McNamara: o debate sobre a homofobia.

Foi começar a falar que Bela deu uma leve engasgada com um princípio de bocejo

- Pégasus, essa discussão sobre homofobia dispensa o sonífero que estou acostumada a tomar e que teve sua produção suspensa porque os funcionários da fábrica chinesa, Propinol de las Rocas, entraram em greve.

Mas, como não presto, pedi a ela que, por favor, deixasse-me dar continuidade a nossa conversa.

- Tá bom, amigo. Só por amor mesmo pra gente se permitir ouvir outra pessoa e correr o risco de cair num sono de mil anos...

Eu dormi trinta e dois anos, disse Adormecida, acordei e o povo ainda está a falar sobre o Projeto de Lei que criminaliza a homofobia! Por mil dragões, as pessoas não veem que este tipo de projeto fere o princípio constitucional da igualdade, ao criar normas que beneficiam exclusivamente uma parcela da sociedade em detrimento do todo?

- A igualdade, juridicamente falando, não repousa sobre o ideal da igualdade entre iguais, mas sim da igualdade entre desiguais. O mito da igualdade plena é tão fascista quanto o da diversidade plena, por supuesto.  Constitucionalmente, o princípio da igualdade prevê que os desiguais não sejam tratados de forma desigual perante a Lei. O Projeto de Lei, Num Sei o que Lá, talvez busque se mirar nesta ideia.

- Mas, o Movimento Gay crucifica os heterossexuais, os católicos e os evangélicos, chamando-os de nazistas e não dá a chance de seus opositores se defenderem. Se esse Projeto de Lei for aprovado, ninguém poderá olhar de soslaio para um homossexual que será acusado de discriminação. Então, durante uma briga, se um gay me manda ir tomar no cu, serei obrigada, para evitar a cadeia, a dizer resignadamente: “Muito obrigado, a seu dispor”...

- Certamente talvez, o que está em jogo é o direito de uma pessoa, a despeito da orientação sexual, poder ser mandada ir tomar no cu ou ser chamada de viado, ou de corno, sem que estes palavrões sejam porta de entrada para atitudes que tenham em vista excluir o cidadão do convívio social.

Nas brigas, é comum ofendermos os outros, ferindo-os em pontos nevrálgicos de sua dignidade, a exemplo da sanidade, do amor e do trabalho. Mas, sob os insultos costuma pairar o princípio da incerteza.  Quando sou chamado de louco, implicitamente me é dado o direito de contradizer este insulto.

Porém, como é sabido por quem bem o sabe, alguns grupos sociais carregam o peso histórico da estigmatização e o que poderia soar como um insulto banal pode funcionar como um ímã que atrai o peso do estigma cultivado ao longo de séculos.

O Projeto de Lei,  número Num Sei Qual, talvez tente evitar que o insulto seja uma forma velada de negar ao homossexual o direito a usufruir de outros dois princípios básicos: o direito a personalidade (a existir sendo quem se é) e o direito de não ter sua personalidade tipificada como crime e de, em virtude da personalidade, ser tratado como alguém que, presumidamente, não teria direito ao contraditório.

O problema não é alguém mandar você ir tomar no cu, mas sim alguém, veladamente, utilizar o insulto para decretar que o outro não tem direito de existir. Afinal, o insultador de responsa sabe que ao insultar o outro é passível de cair na armadilha do próprio insulto, em igualdade de condições. Ou seja, quando mando alguém ir tomar no cu ou o chamo de corno devo saber que eu também sou passível de tomar no cu e de ser corno. Mas, para tomar no cu ou ser corno, pressupõe-se que tenho o direito a existir e que não se está tentando tomar-me este direito.

Lembro-me de uma história sobre o jornalista caruaruense Álvaro Lins. Ele se emputeceu quando o recifense Manoel Bandeira escreveu uma crítica sobre o discurso que Lins tinha feito quando assumiu a presidência da Academia de Letras. Ligou Álvaro para Manoel:

- Você é mesmo um filho da puta!, insultou Lins
- Eu não! Você é, pois é filho de sua mãe com um padre!

O que está em jogo não é o mérito do insulto de Lins ou do contra-insulto de Bandeira, mas sim que, nesse caso, o insulto pressupôs o direito ao contra-insulto e, ambos os escritores puderam seguir sem ter ameaçada a dignidade de existir.

- Mas, nenhum outro grupo tem esse tipo de Lei que o favoreça exclusivamente, replicou Bela Adormecida

-  Existem leis cujo objetivo é tratar os desiguais igualmente. Daí a legislação referente à acessibilidade, os estatutos do idoso, da criança e do adolescente, a legislação que pune a violência contra a mulher.

Estas leis específicas estão sujeitas a distorções como qualquer sistema legal. Mas, nas democracias, pressupõe-se que o ordenamento jurídico não é um Walking Dead, mas sim um organismo vivo que tenta enfrentar suas contradições e aperfeiçoar-se.

Sem as leis que protegem os desiguais de tratamento desigual, como poderiam ter sido enfrentadas realidades miseráveis como o Apartheid, o trabalho infantil, a exclusão da mulher de pontos sensíveis da cidadania como o direito a votar?

Mas, a vitória contra estas misérias nunca é completa, pois os Apartheids aparentemente derrotados buscam ressurgir infiltrando-se em qualquer brecha onde se alimentem do combate ao direito humano a personalidade e dignidade.

- E esta tentativa de negar o direito a alguém de existir e ter sua personalidade dignificada não pode ocorrer partindo dos gays para os heterossexuais, como se ser heterossexual estivesse se tornando uma vergonha ou algo indigno?

- É possível, assim como é possível aos ateus serem discriminados por representarem uma minoria em países como o Brasil, de forte tradição religiosa. Mas, não foi porque os sonhos de Martin Luther King e Nelson Mandela deram frutos que foi decretado toque de recolher para quem veste a máscara da pele branca.

O carnaval vai continuar existindo para os que usam a máscara das diferentes sexualidades: as máscaras e suas contradições, porque qualquer faceta humana (incluindo a sexualidade) que nega suas contradições corre o risco de ferir o direito dos outros à existência.

- Esse tipo de projeto pode acabar obrigando-nos a sair de casa e ver dois homens ou duas mulheres se beijando ou obrigando a Igreja a negar seus princípios e aceitar a pulso a homossexualidade. Se a Constituição prevê o direito a liberdade de expressão, tal liberdade deve valer para os homossexuais, mas também para os demais grupos e inclui o direito destes grupos de expressar que são contrários à homossexualidade.

- Nenhum direito é pleno e irrestrito, inclusive o direito à expressão que, constitucionalmente, não admite o anonimato.  Outra limitação ao direito de expressão é a de que ele não pode incitar ódio e violência. É preciso, contudo, ter em vista que, historicamente, a crítica a determinados grupos, a exemplo dos negros e dos homossexuais, está direta ou indiretamente relacionada à incitação da violência. 

Mas, o projeto de Lei contra a homofobia não poderá cercear o direito dos cidadãos, sejam ou não homossexuais, de manifestar o descontentamento com determinadas posturas consideradas excessivas.

Porém, veremos, a partir da entrada em vigor da Lei, onde o descontentamento se refere à postura ou à orientação sexual. Neste caso, veremos se haverá estabelecimentos que terão coragem de pendurar em suas paredes uma placa que diga: “Neste recinto é proibido a casais se beijarem”, independentemente da orientação sexual.

- O que acontece se eu continuar divergindo de você e se não chegarmos ao almejado consenso de ouro? Devo esperar ser excluída do Facebook?

- A amizade é um país cuja alma ultrapassa infinitamente as fronteiras do Facebook ou de qualquer outra rede, assim como nenhuma rede dá conta de capturar a beleza da piracema. 

Preconceitos continuam existindo, mas nenhum preconceito pode negar a necessidade e o valor da pororoca. Mas, ficarei feliz se quando você acordar não resolver me excluir do Face, pois agrada-me por demais te visitar e me enche de admiração e destemor teu senso crítico e tua nobreza, que não está à venda.

Depois que disse isso, Bela Adormecida lançou-me seu indescritível olhar e o sonho acordou-me, frustrando o despertador do celular.

A Bela Adormecida - Tchaikovsky

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