127 anos após ser lançado na Inglaterra, o romance Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, teve
sua tradução arquitetada para o Português por Lúcio Costa: vinte anos antes da
inauguração de Brasília. Foi a primeira obra da coleção Fogos Cruzados, representando o auge da Livraria José Olympio e reunindo grandes
clássicos da literatura mundial como Moby Dick, Deuses Riem e Sangue e Volúpia.
Os personagens principais do livro são a sagaz Elizabeth
Bennet, dona da atraente falha de caráter de julgar as pessoas com base em
impressões colhidas no precipício, e Fitzwilliam Darcy, reservado e de expressões
graves causticadas por uma dose de charmosa arrogância.
Em seu aniversário de duzentos anos, a “fórmula” de Orgulho
e Preconceito, com mais de vinte milhões de cópias vendidas, ganhou procuração
para ingressar no rol dos arquétipos. Prova disso é o fato de o livro não ter
se contentado com as fronteiras do romance, como atesta a releitura Orgulho e Preconceito e Zumbis, que Seth
Grahame-Smith (mesmo autor de Abraham Lincoln, caçador de vampiros ) admite ter escrito em co-autoria com Jane Austen.
No universo ficcional de Hollywood e das telenovelas das
Américas, em particular do Brasil, tornou-se hábito construir as relações amorosas
com base na relação entre Elizabeth e Darcy. Trata-se da ideia do amor que
vence a ojeriza inicial gerada pelo conflito entre personalidades aparentemente
antagônicas, desafiando a premissa de que “a primeira impressão é a que fica”.
Em Orgulho e Preconceito, o amor é esculpido como uma
entidade que pressiona e desafia, como o esforço cativante de desbravar as
taças amargas da vida a dois em busca dos fios perdidos de doce de leite, que
fazem o último gole valer mais do que um centeal inteiro.
Orgulho e Preconceito tem predecessores ilustres como o mito
de Cupido e Psique, depois de um intercâmbio de motivações, visto que o
desprezo que Elizabeth ostenta por Darcy é herdado de Cupido, enquanto o
ímpeto, a personagem herda de Psique.
Já Darcy herdou de Cupido a vocação para amar em silêncio,
agindo secretamente para salvar a amada das armadilhas da vida em sociedade. Porém,
toma de Psiquê o gosto por insistir em converter em reticências o aparente
ponto final do amor não correspondido.
Diretamente ou não, as Ligações
Perigosas (1782), de Choderlos de Laclos, dialoga com o romance de Austen.
É o contraponto desalentado do amor que desafia convenções sociais em nome da
espontaneidade. Na obra de Laclos, a ressurreição do Bom Selvagem não passa de uma falsa pista do Paraíso Perdido e que, ao
cabo, revela-se senha para o Inferno. Em Jane Austen, o Bom Selvagem renasce adubado pelo ardor travoso do encontro romântico entre o urbano e provinciano Darcy e a rural e cosmopolita Elizabeth. Mas, contrariamente a Ligações Perigosas, o tempo é generoso e amarra as
pontas soltas que desatam os nós do orgulho e do preconceito. Neste romance, as
sereias desafinam, para que Ulisses – Darcy - se arrisque a dar, mesmo que
timidamente, um mergulho na doçura da contradição humana. E depois disso,
descobrir aturdido, mas encantado, que, na realidade, Circe e Penélope são uma
só pessoa: Elizabeth.
Modernamente, Elizabeth e Darcy reencarnaram nos personagens
Bridgte Jones e Marc Darcy, de O Diário
de Bridgte Jones, escrito por Helen Fielding (curioso saber que Colin Firth interpretou o Darcy de Jane Austen em 1995, numa versão filmada para o canal BBC). Certamente talvez, Jones, no
seu jeito desmantelado, acha espaço para que a espirituosidade de Elizabeth
brote tímida, porém inebriante. Já ambos os Darcy – o de Austen e o de Fielding-
possuem em comum a tática de disfarçar de represa e sisudez o grande desejo de
amar e de se doar.
Conheça algumas capas de edições de Orgulho e Preconceito aqui.
Publicada pela primeira vez em 1970, a história Os Azuis, da Turma da Mônica, é
comparável à obra Maus, escrita por Art Spiegelman, em 1980 (e publicada
somente no início dos anos 90). Neste romance em quadrinhos, o autor fala sobre
os conflitos étnicos durante a II Guerra Mundial.
Os diferentes grupos são alegoricamente representados por
animais. Os judeus são os ratos, os alemães, gatos, os franceses, sapos, os
poloneses, porcos, os americanos, cachorros, os suecos, renas, os ciganos,
traças, os ingleses, peixes. Por meio desta estratégia Spiegelman não poupa
nenhum dos envolvidos na guerra de sua verve crítica, evitando a tendência
comum de, ao abordar a guerra, demonizar um grupo enquanto se deifica o outro.
Em Os
Azuis, Maurício de Souza, na época com 35 anos e com um traço
bizantino, onde os personagens possuíam formas rústicas e angulosas, abordou o
preconceito contra a cor da pele de maneira criativa e desconcertante: isto no
período de radicalização do Apartheid. A história se baseia nos estudos sobre
universos paralelos, teoria em franca expansão naquele período.
Na trama, Mônica, sem se dar conta, é levada a um universo
paralelo em que todos são azuis. Ela é, então, vitimada pela discriminação por
ser branca, sendo inclusive perseguida. A ironia máxima é que até o cachorrinho
Bidu, que também é azul no universo paralelo, sente ojeriza pela Mônica branca.
A personagem Mônica está completanto cinquenta anos. Foi criada em 1963 nas tiras do Cebolinha.
É inspirada numa das filhas de Mauricio de Sousa, assim como a
personagens Magali.
A seguir, a versão, em desenho animado, de Os Azuis. Nesta releitura, o final é modificado. Torna-se meio hollywoodiano, mudando, por exemplo, o modo como Bidu trata Mônica:
Peço desculpas aos
historiadores se minhas referências estiverem erradas e ao mérito dos juristas
se o que disser, nessa postagem, macular o tesouro angariado pela
jurisprudência.
Na tão distante [e tão
próxima (e tão distante)...] Antiguidade, bem como na Idade Média, havia
códigos de honra para o exercício da violência, por mais injustificável que
esta sempre tenha sido (nisto que digo mora, sem sombra de dúvida, uma
redundância, posto que a violência é o injustificável). Mas havia também espaço
para os requintes de crueldade, que, como os vampiros, têm vagado através do
tempo, eternamente jovens, e incapazes de matar a sede.
Ao falar sobre códigos de
honra, refiro-me àqueles que instituem um campo de batalha, a mínima abertura
para negociações diplomáticas e o enfrentamento entre pessoas armadas e
dispostas a combater, o que exclui crianças e outras pessoas indefesas.
Assim também como os
vampiros, os requintes de crueldade assumem as vestes de seu respectivo tempo. E
parece que, neste momento, os códigos de honra estão se tornando um tipo de
cachecol de organza prestes a dar adeus, levado pelos ventos da desfaçatez.
O historiador Eric
Hobsbawn acha, na II Grande Guerra, um marco para o abandono deliberado dos
códigos de honra, contexto em que os ataques aposentam as trinhcheiras e invadem,
de forma massiva, o reduto dos civis, como atestam os bombardeios alemães sobre
Londres e o início do uso de agentes químicos e armas biológicas que roubam do
adversário qualquer chance de se colocar em pé de igualdade perante o
adversário.
Por mais injustificável
que a violência sempre tenha sido, termina, quando desprovida de códigos de honra, por subverter a mais famosa frase atribuída a Maquiavel (e que ele nunca disse):
“Os fins justificam os meios”. Se esta frase, por si só, já é ferida pela
indiferença e pelo cinismo, imaginemos quando é imundamente cambiada em “Os
meios justificam-se, independentemente dos fins”.
Esta “lógica” tem regido
crimes recentes como o do jovem morto por questionar o valor da conta na
churrascaria, o da jovem assassinada aos nove meses de gestação, o de um jovem
casal atacado com uma bomba caseira enquanto aguardava, em seu carro, que o
semáforo abrisse e o da menina de um ano morta por um tiro numa tentativa de
assalto ao carro da mãe.
Em todos esses casos, os
criminosos não obtiveram nada em troca. Não houve fim para sequer tentar justificar
o injustificável, ou seja, a violência utilizada. A mídia chama estes
criminosos de monstros e animais, mas os monstros e os animais são movidos por
instintos, enquanto o que tem movido a violência contemporânea é um tipo de
ódio engravatado: um ódio cuja motivação não é triunfar em cima dos despojos da
guerra, mas sim contentar-se em nutrir-se de suas próprias chamas de gelo. A
violência contemporânea nutre-se da perpetuação de seu ciclo, como um abutre
que não se cansa de engolir o próprio vômito, fingido estar a busca de
nutrientes.
A violência contemporânea se suja de sangue,
mas traz nas veias uma sede de ser clean,
de promover a assepsia. Não é a animalidade que a move ou o desejo de ver o
mais “frágil” ser subjugado. É mais o desejo de acreditar-se capaz de ignorar (e,
neste sentido, ignorar se opõe a orar, cuja significação primeira é reconhecer
a importância da presença dos outros no mundo) a presença do outro, simulando
uma volta ao Gênesis e conspirando para rebobinar o “tape” da criação,
descriando as criaturas. O “requinte” da crueldade, em seu "look" atual, faz do sugar o sangue alheio
uma desculpa para sugar da existência a presença humana.
Mas, esse texto não é um
esforço para tornar compreensível o incompreensível. É antes um olhar sobre a
fratura exposta das contradições que o quotidiano tem tentado substituir pelo
modismo do engessamento.
Performance artística do Coletivo Aqui Bate Um Coração
O entendimento é uma operação seletiva, cujos parâmetros
variam conforme a faixa etária. Hoje saboreei a parcela empírica dessa verdade,
re-escutando a música “Quando você passa”, conhecida popularmente como “Turu
Turu” (graças a Mariana Silveira, que desenterrou dos arquivos do acaso esta
joia).
Pode parecer que essa postagem é um pretexto para dar vazão
ao veneno. Mas se trata de uma reflexão sobre o modo como a memória nos
devolve, com o passar do tempo, as informações que enviamos para sua caixa
postal. E as cartas devolvidas pela memória chegam com selos bem diferentes dos
que revestem a carta no momento da postagem inicial.
Na adolescência, a onomatopéia dessa música passava despercebida somada à batida da canção. Mas hoje, entre 25 e trinta e
uns, foi o alvo primeiro da flecha da minha atenção.
Comumente, o coração retratado pelo cancioneiro popular do
Brasil escolhe bater fazendo Tum Tum, conforme a tradução que Jackson do
Pandeiro fez, no começo dos anos 60, para o compasso cardíaco (numa música resgatada
pela cantora Karina Buhr). Esta tradução vem sendo passada adiante por músicas
como “Oi Tum, Tum, bate coração”, composta por Cecéu e sucesso nas vozes de
Marinês e Elba Ramalho.
Ao longo do tempo, foram surgindo variações como o Tic Tac
da Timbalada, o beat baixinho de Daniela Mercury que importa dos Estados Unidos
um bater do coração com sotaque inglês. Aliás, o “beat of the heart” é uma
expressão percursiva comum no universo do pop inglês, visitando desde a música
de Elton John (de forma marcante em Empty Garden), passando por Smooth Criminal, de
Michael Jackson e entupindo suas veias na leitura insossa de Hilary Duff.
Mais ou menos uma década atrás, Sandy e Jr criaram um
neologismo onomatopaico, rebatizando o Tum Tum do corcom o nome de Turu Turu. Para desavisados, o
turu turu pode soar como uma espécie de parasita, tipo um animal peçonhento de
alguma selva ou mesmo uma forma infantil de se referir ao nosso já conhecido
amigo, o cururu, nome dados pelos índios ao sapo grande e gordo.
Na verdade, o turu é um molusco que vive em árvores podres.
É saboreado na ilha de Marajó e no interior da Amazônia vivo e cru, em caldo
com farinha ou em moquecas e é considerado afrodisíaco.
Eis o Turu
Existe também um passarinho charmoso chamado Turu Turu (confesso
que este dado me fez rever a opinião sobre a onomatopéia de Sandy e Jr).
Muita gente trelou com a música Esse cara sou eu, de Roberto
Carlos, mas não atentou para o grau de obsessão presente no Turu Turu. Vejamos
a seguinte estrofe da canção:
Salvo a licença poética que foi buscar na hipérbole
inspiração para compor esta pérola, “imortalizada” nas vozes dos filhos de Chororó, há
que se ficar, no mínimo, desconfiado se, ao se recostar a cabeça no peito de quem se
ama (seja, ou não, ele [ou ela] o "cara" ou a "cara") se ouvisse Turu Turu... Mas, não
faz mal algum tentar, de tempos em tempos ensinar um novo idioma ao coração. E,
desajeitado como costuma ser, ele, vez por outra, vai bater de forma mais
esdrúxula que o Turu Turu.
Uma dessas tentativas de renomear o pulsar do coração é da Orquestra
de Câmera do Coração, que produz sons com base no ritmo cardíaco, aliando
sensores ao corpo dos músicos. Ao cabo da postagem,
um exemplo da performance do grupo.
Incrível também é a interpretação plástica dada ao bater cardíaco pelo Coletivo Aqui Bate Um Coração (Agência Távola), que espalhou corações de isopor por monumentos da cidade de São Paulo.
Enquanto os apóstolos dormiam, aproximei-me de Jesus em sua
agonia, no Getsêmani
Éramos todos vigilantes: Cristo, eu, meus beijos e minhas
traições.
Quis fazer de uma das flechas da lua um lenço para enxugar o
sangue cansado no rosto do meu Amigo.
Ou talvez, quisesse, em minha cleptomania, roubar de seu
precioso sangue e, junto, roubar a palidez lunar para guardar não sei onde,
pois minha aljava estava furada: não resistiu ao peso das ogivas
Como quis colar teu rosto ao meu e soprar até teus
horizontes atracarem no cais do reerguimento! Beberia teu grito com cálice e
tudo e me fartaria do sonho ensandecido de achar, no meu vazio sem fundo, um
tiro certeiro para tua amargura.
Despi-me, nudez após nudez, mas não consegui jogar fora os
vales de sombra, nem as metáforas de guerra onde se apoiava minha invalidez.
Tua alma, cansada até a morte, armada de consolo, fez amor. Pude sentir a brisa
daquele gozo que me acolhia: a mim e a minhas precoces revoadas à procura das
asas que os abismos tomaram emprestado e não mais queriam devolver. E só teu
abraço, com teu corpo fragilizado pelo peso das almas, para convencer os exércitos
em mim, a, àquela altura, darem meia-volta.
Meus dedos trocaram os anéis de Saturno por teus cachos e
desejei ardentemente que a memória daquele desvelado carinho pudesse no futuro
aplacar a marcha dos espinhos sobre tua fronte. Creio que não consegui, Amigo
meu que não me pertence! Mas, de repente, tu me olhaste e, telepaticamente,
disseste-me:
- Pronto, já aceitei de volta o vinho tinto da amargura!
Então, avistei ao fundo do cálice uma nascente de águas
vivas cujos remetentes eram multidões de corações humanos que, antes de
nascerem, batiam ansiosamente pela oportunidade de achar a saída depois que
aquele amargo mar se ia secar.