30 de janeiro de 2013

O poeta que foi multado






 Multa

Texto de Jose Luis Paredis



Guardar os eu-te-amos
Num armário sem porte de armas

E seguir trancado,
Como quem espera que a chave
Bata à sua porta

A pior forma de estar preso
É star de mãos atadas
Por trás de grades abertas

Que não dispensam a sela
Ao montar o corcel desmanchado em cinza
De uma asa só e refém de fisioterapia,

Ultrapassa o vento mais ligeiro
E, na curva, é parado por uma blitz
Que desaprendeu a ser relâmpago
E teve sua liberdade preventiva decretada
Por ter esquecido a casa em sua identidade

O auto de infração dizia: Onde estiver o teu limite, aí estará a cor de tua
Invisível oração

“Por favor, Pare!
Isso é melhor que você”,
Sentenciou o fiscal de trânsito
Enquanto apagava o tom da minha voz
Estacionado na passagem secreta de um beco-sem-saída

29 de janeiro de 2013

Orgulho e Preconceito comemora 200 anos e convida para a festa Bridget Jones e zumbis



Sara Singh's cover for Splinter's Classic Lines edition


127 anos após ser lançado na Inglaterra, o romance Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, teve sua tradução arquitetada para o Português por Lúcio Costa: vinte anos antes da inauguração de Brasília. Foi a primeira obra da coleção Fogos Cruzados, representando o auge da Livraria José Olympio e reunindo grandes clássicos da literatura mundial como Moby Dick, Deuses Riem e Sangue e Volúpia.

Os personagens principais do livro são a sagaz Elizabeth Bennet, dona da atraente falha de caráter de julgar as pessoas com base em impressões colhidas no precipício, e Fitzwilliam Darcy, reservado e de expressões graves causticadas por uma dose de charmosa arrogância.

Em seu aniversário de duzentos anos, a “fórmula” de Orgulho e Preconceito, com mais de vinte milhões de cópias vendidas, ganhou procuração para ingressar no rol dos arquétipos. Prova disso é o fato de o livro não ter se contentado com as fronteiras do romance, como atesta a releitura Orgulho e Preconceito e Zumbis, que Seth Grahame-Smith (mesmo autor de Abraham Lincoln, caçador de vampiros ) admite ter escrito em co-autoria com Jane Austen.

No universo ficcional de Hollywood e das telenovelas das Américas, em particular do Brasil, tornou-se hábito construir as relações amorosas com base na relação entre Elizabeth e Darcy. Trata-se da ideia do amor que vence a ojeriza inicial gerada pelo conflito entre personalidades aparentemente antagônicas, desafiando a premissa de que “a primeira impressão é a que fica”.

Em Orgulho e Preconceito, o amor é esculpido como uma entidade que pressiona e desafia, como o esforço cativante de desbravar as taças amargas da vida a dois em busca dos fios perdidos de doce de leite, que fazem o último gole valer mais do que um centeal inteiro.

Orgulho e Preconceito tem predecessores ilustres como o mito de Cupido e Psique, depois de um intercâmbio de motivações, visto que o desprezo que Elizabeth ostenta por Darcy é herdado de Cupido, enquanto o ímpeto, a personagem herda de Psique.

Já Darcy herdou de Cupido a vocação para amar em silêncio, agindo secretamente para salvar a amada das armadilhas da vida em sociedade. Porém, toma de Psiquê o gosto por insistir em converter em reticências o aparente ponto final do amor não correspondido.

Diretamente ou não, as Ligações Perigosas (1782), de Choderlos de Laclos, dialoga com o romance de Austen. É o contraponto desalentado do amor que desafia convenções sociais em nome da espontaneidade. Na obra de Laclos, a ressurreição do Bom Selvagem não passa de uma falsa pista do Paraíso Perdido e que, ao cabo, revela-se senha para o Inferno. Em Jane Austen, o Bom Selvagem renasce adubado pelo ardor travoso do encontro romântico entre o urbano e provinciano Darcy e a rural e cosmopolita Elizabeth. Mas, contrariamente a Ligações Perigosas, o tempo é generoso e amarra as pontas soltas que desatam os nós do orgulho e do preconceito. Neste romance, as sereias desafinam, para que Ulisses – Darcy - se arrisque a dar, mesmo que timidamente, um mergulho na doçura da contradição humana. E depois disso, descobrir aturdido, mas encantado, que, na realidade, Circe e Penélope são uma só pessoa: Elizabeth.

Modernamente, Elizabeth e Darcy reencarnaram nos personagens Bridgte Jones e Marc Darcy, de O Diário de Bridgte Jones, escrito por Helen Fielding (curioso saber que Colin Firth interpretou o Darcy de Jane Austen em 1995, numa versão filmada para o canal BBC). Certamente talvez, Jones, no seu jeito desmantelado, acha espaço para que a espirituosidade de Elizabeth brote tímida, porém inebriante. Já ambos os Darcy – o de Austen e o de Fielding- possuem em comum a tática de disfarçar de represa e sisudez o grande desejo de amar e de se doar.

Conheça algumas capas de edições de Orgulho e Preconceito aqui.

Colin Firth como Darcy, em Orgulho e Preconceito

22 de janeiro de 2013

Quando a personagem Mônica foi discriminada por pessoas de pele azul





Publicada pela primeira vez em 1970, a história Os Azuis, da Turma da Mônica, é comparável à obra Maus, escrita por Art Spiegelman, em 1980 (e publicada somente no início dos anos 90). Neste romance em quadrinhos, o autor fala sobre os conflitos étnicos durante a II Guerra Mundial.

Os diferentes grupos são alegoricamente representados por animais. Os judeus são os ratos, os alemães, gatos, os franceses, sapos, os poloneses, porcos, os americanos, cachorros, os suecos, renas, os ciganos, traças, os ingleses, peixes. Por meio desta estratégia Spiegelman não poupa nenhum dos envolvidos na guerra de sua verve crítica, evitando a tendência comum de, ao abordar a guerra, demonizar um grupo enquanto se deifica o outro.

Em Os Azuis, Maurício de Souza, na época com 35 anos e com um traço bizantino, onde os personagens possuíam formas rústicas e angulosas, abordou o preconceito contra a cor da pele de maneira criativa e desconcertante: isto no período de radicalização do Apartheid. A história se baseia nos estudos sobre universos paralelos, teoria em franca expansão naquele período.

Na trama, Mônica, sem se dar conta, é levada a um universo paralelo em que todos são azuis. Ela é, então, vitimada pela discriminação por ser branca, sendo inclusive perseguida. A ironia máxima é que até o cachorrinho Bidu, que também é azul no universo paralelo, sente ojeriza pela Mônica branca.

A personagem Mônica está completanto cinquenta anos. Foi criada em 1963 nas tiras do Cebolinha. É inspirada numa das filhas de Mauricio de Sousa, assim como a personagens Magali.
 


 A seguir, a versão, em desenho animado, de Os Azuis. Nesta releitura, o final é modificado. Torna-se meio hollywoodiano, mudando, por exemplo, o modo como Bidu trata Mônica: 

20 de janeiro de 2013

"Os meios justificam os meios": o troco da churrascaria e a violência despida de códigos de honra


Fonte: Sengoku

Peço desculpas aos historiadores se minhas referências estiverem erradas e ao mérito dos juristas se o que disser, nessa postagem, macular o tesouro angariado pela jurisprudência.

Na tão distante [e tão próxima (e tão distante)...] Antiguidade, bem como na Idade Média, havia códigos de honra para o exercício da violência, por mais injustificável que esta sempre tenha sido (nisto que digo mora, sem sombra de dúvida, uma redundância, posto que a violência é o injustificável). Mas havia também espaço para os requintes de crueldade, que, como os vampiros, têm vagado através do tempo, eternamente jovens, e incapazes de matar a sede.

Ao falar sobre códigos de honra, refiro-me àqueles que instituem um campo de batalha, a mínima abertura para negociações diplomáticas e o enfrentamento entre pessoas armadas e dispostas a combater, o que exclui crianças e outras pessoas indefesas.

Assim também como os vampiros, os requintes de crueldade assumem as vestes de seu respectivo tempo. E parece que, neste momento, os códigos de honra estão se tornando um tipo de cachecol de organza prestes a dar adeus, levado pelos ventos da desfaçatez.

O historiador Eric Hobsbawn acha, na II Grande Guerra, um marco para o abandono deliberado dos códigos de honra, contexto em que os ataques aposentam as trinhcheiras e invadem, de forma massiva, o reduto dos civis, como atestam os bombardeios alemães sobre Londres e o início do uso de agentes químicos e armas biológicas que roubam do adversário qualquer chance de se colocar em pé de igualdade perante o adversário.

Por mais injustificável que a violência sempre tenha sido,  termina, quando desprovida de códigos de honra, por subverter a mais famosa frase atribuída a Maquiavel (e que ele nunca disse): “Os fins justificam os meios”. Se esta frase, por si só, já é ferida pela indiferença e pelo cinismo, imaginemos quando é imundamente cambiada em “Os meios justificam-se, independentemente dos fins”.

Esta “lógica” tem regido crimes recentes como o do jovem morto por questionar o valor da conta na churrascaria, o da jovem assassinada aos nove meses de gestação, o de um jovem casal atacado com uma bomba caseira enquanto aguardava, em seu carro, que o semáforo abrisse e o da menina de um ano morta por um tiro numa tentativa de assalto ao carro da mãe.

Em todos esses casos, os criminosos não obtiveram nada em troca. Não houve fim para sequer tentar justificar o injustificável, ou seja, a violência utilizada. A mídia chama estes criminosos de monstros e animais, mas os monstros e os animais são movidos por instintos, enquanto o que tem movido a violência contemporânea é um tipo de ódio engravatado: um ódio cuja motivação não é triunfar em cima dos despojos da guerra, mas sim contentar-se em nutrir-se de suas próprias chamas de gelo. A violência contemporânea nutre-se da perpetuação de seu ciclo, como um abutre que não se cansa de engolir o próprio vômito, fingido estar a busca de nutrientes.

A violência contemporânea se suja de sangue, mas traz nas veias uma sede de ser clean, de promover a assepsia. Não é a animalidade que a move ou o desejo de ver o mais “frágil” ser subjugado. É mais o desejo de acreditar-se capaz de ignorar (e, neste sentido, ignorar se opõe a orar, cuja significação primeira é reconhecer a importância da presença dos outros no mundo) a presença do outro, simulando uma volta ao Gênesis e conspirando para rebobinar o “tape” da criação, descriando as criaturas. O “requinte” da crueldade, em seu "look"  atual, faz do sugar o sangue alheio uma desculpa para sugar da existência a presença humana.

Mas, esse texto não é um esforço para tornar compreensível o incompreensível. É antes um olhar sobre a fratura exposta das contradições que o quotidiano tem tentado substituir pelo modismo do engessamento.

11 de janeiro de 2013

A saga do Tum Tum que virou Turu Turu: as orquestras do coração


Performance artística do Coletivo Aqui Bate Um Coração
O entendimento é uma operação seletiva, cujos parâmetros variam conforme a faixa etária. Hoje saboreei a parcela empírica dessa verdade, re-escutando a música “Quando você passa”, conhecida popularmente como “Turu Turu” (graças a Mariana Silveira, que desenterrou dos arquivos do acaso esta joia).

Pode parecer que essa postagem é um pretexto para dar vazão ao veneno. Mas se trata de uma reflexão sobre o modo como a memória nos devolve, com o passar do tempo, as informações que enviamos para sua caixa postal. E as cartas devolvidas pela memória chegam com selos bem diferentes dos que revestem a carta no momento da postagem inicial.

Na adolescência, a onomatopéia dessa música passava despercebida somada à batida da canção. Mas hoje, entre 25 e trinta e uns, foi o alvo primeiro da flecha da minha atenção.

Comumente, o coração retratado pelo cancioneiro popular do Brasil escolhe bater fazendo Tum Tum, conforme a tradução que Jackson do Pandeiro fez, no começo dos anos 60, para o compasso cardíaco (numa música resgatada pela cantora Karina Buhr). Esta tradução vem sendo passada adiante por músicas como “Oi Tum, Tum, bate coração”, composta por Cecéu e sucesso nas vozes de Marinês e Elba Ramalho.

Ao longo do tempo, foram surgindo variações como o Tic Tac da Timbalada, o beat baixinho de Daniela Mercury que importa dos Estados Unidos um bater do coração com sotaque inglês. Aliás, o “beat of the heart” é uma expressão percursiva comum no universo do pop inglês, visitando desde a música de Elton John (de forma marcante em Empty Garden), passando por Smooth Criminal, de Michael Jackson e entupindo suas veias na leitura insossa de Hilary Duff.

Mais ou menos uma década atrás, Sandy e Jr criaram um neologismo onomatopaico, rebatizando o Tum Tum do cor  com o nome de Turu Turu. Para desavisados, o turu turu pode soar como uma espécie de parasita, tipo um animal peçonhento de alguma selva ou mesmo uma forma infantil de se referir ao nosso já conhecido amigo, o cururu, nome dados pelos índios ao sapo grande e gordo.

Na verdade, o turu é um molusco que vive em árvores podres. É saboreado na ilha de Marajó e no interior da Amazônia vivo e cru, em caldo com farinha ou em moquecas e é considerado afrodisíaco.
Eis o Turu
Existe também um passarinho charmoso chamado Turu Turu (confesso que este dado me fez rever a opinião sobre a onomatopéia de Sandy e Jr).

Muita gente trelou com a música Esse cara sou eu, de Roberto Carlos, mas não atentou para o grau de obsessão presente no Turu Turu. Vejamos a seguinte estrofe da canção:

Se eu pudesse te prender
Dominar seus sentimentos
Controlar seus passos
Ler sua agenda e pensamento
Mas meu frágil coração
Acelera o batimento
E faz turu, turu, turu, turu, turu, turu tu

Turu-Turu: By André Adeodato
Salvo a licença poética que foi buscar na hipérbole inspiração para compor esta pérola, “imortalizada” nas vozes dos filhos de Chororó, há que se ficar, no mínimo, desconfiado se, ao se recostar a cabeça no peito de quem se ama (seja, ou não, ele [ou ela] o "cara" ou a "cara") se ouvisse Turu Turu... Mas, não faz mal algum tentar, de tempos em tempos ensinar um novo idioma ao coração. E, desajeitado como costuma ser, ele, vez por outra, vai bater de forma mais esdrúxula que o Turu Turu.

Performance artística do Coletivo Aqui Bate Um Coração
Uma dessas tentativas de renomear o pulsar do coração é da Orquestra de Câmera do Coração, que produz sons com base no ritmo cardíaco, aliando sensores ao corpo dos músicos.  Ao cabo da postagem, um exemplo da performance do grupo.

Incrível também é a interpretação plástica dada ao bater cardíaco pelo Coletivo Aqui Bate Um Coração (Agência Távola), que espalhou corações de isopor por monumentos da cidade de São Paulo.



Heart Chamber Orchestra from pure on Vimeo.
Orquestra do coração

Turu Turu reinterpretada por Maria Gadú

Coletivo Aqui Bate um Coração

Postagem dedicada à amiga Mariana Silveira, que tem um refinado gosto, a despeito de secretamente gostar do Turu Turu

2 de janeiro de 2013

Iniciando 2013 com um brinde no Getsêmani

Head of Christ, Georges Rouault


O brinde
Por Clistarco Sepúlveda

Enquanto os apóstolos dormiam, aproximei-me de Jesus em sua agonia, no Getsêmani
Éramos todos vigilantes: Cristo, eu, meus beijos e minhas traições.
Quis fazer de uma das flechas da lua um lenço para enxugar o sangue cansado no rosto do meu Amigo.

Ou talvez, quisesse, em minha cleptomania, roubar de seu precioso sangue e, junto, roubar a palidez lunar para guardar não sei onde, pois minha aljava estava furada: não resistiu ao peso das ogivas

Como quis colar teu rosto ao meu e soprar até teus horizontes atracarem no cais do reerguimento! Beberia teu grito com cálice e tudo e me fartaria do sonho ensandecido de achar, no meu vazio sem fundo, um tiro certeiro para tua amargura.

Despi-me, nudez após nudez, mas não consegui jogar fora os vales de sombra, nem as metáforas de guerra onde se apoiava minha invalidez. Tua alma, cansada até a morte, armada de consolo, fez amor. Pude sentir a brisa daquele gozo que me acolhia: a mim e a minhas precoces revoadas à procura das asas que os abismos tomaram emprestado e não mais queriam devolver. E só teu abraço, com teu corpo fragilizado pelo peso das almas, para convencer os exércitos em mim, a, àquela altura, darem meia-volta.

Meus dedos trocaram os anéis de Saturno por teus cachos e desejei ardentemente que a memória daquele desvelado carinho pudesse no futuro aplacar a marcha dos espinhos sobre tua fronte. Creio que não consegui, Amigo meu que não me pertence! Mas, de repente, tu me olhaste e, telepaticamente, disseste-me:

- Pronto, já aceitei de volta o vinho tinto da amargura!

Então, avistei ao fundo do cálice uma nascente de águas vivas cujos remetentes eram multidões de corações humanos que, antes de nascerem, batiam ansiosamente pela oportunidade de achar a saída depois que aquele amargo mar  se ia secar.

Cálice - Chico Buarque e Milton Nascimento
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