31 de maio de 2012

O Jantar dos Cuzões e o ciclo do engano no cinema francês


Da eesquerda para a direita, Pignon e Brochan, personagens principais de Le dîner de Cons


Le dîner de Cons é uma adaptação para o cinema de peça teatral homônima. O filme foi escrito e dirigido por Francis Weber, que também é autor da versão da comédia levada aos palcos. É um filme que confirma o gosto francês por histórias de amizade - a exemplo de Mon meilleur ami, de Patrice Laconte. São amizades que florescem após um ciclo em que um enganador expõe um enganado ao ridículo e termina se dando conta de que, ao fazer isso, perdeu a chance de ter um grande amigo. 

Porém, um tipo de mão redentora invisível, comum nos folhetins do século XIX, entra em cena e faz o enganador perceber que só fez enganar a si mesmo. Após perceber a grandeza da alma do enganado, tornando-se amigo dele, o enganador redimido tem revelado o seu heroísmo, encoberto até então pela arrogância.

O ciclo do engano, em Le dîner de Cons, é protagonizado pelo ator Jacques Villeret, que interpreta brilhantemente François Pignon (o enganado) e pelo ator Thierry Lhermitte, no papel de Pierre Brochan (o enganador).

O ponto de partida da história é o hábito que Brochan e outros amigos ricos têm de, com certa frequência, organizar jantares chamados “jantares de bestas”, se quisermos suavizar a tradução da palavra francesa “con”, que se aproxima da palavra inglesa “pussy”, resultando em Português em algo do tipo “cuzão”.

O objetivo desses jantares é que cada rico ocioso vá acompanhado de alguém que considera um “cuzão” para, durante a ocasião, incitar o “besta” a dar mostras de seu status de loser. A mesa de refeições torna-se uma versão metafórica em miniatura do coliseu romano, na qual os anfitriões têm direito a pão e circo e os convidados seguem vendados em direção ao riso devorador dos leões. 

Ao fim, o "gladiador" vencedor é, contraditoriamente, o que consegue ser mais loser. O prêmio do loser é a revelação “piedosa” de que ele “é” um projeto falido de ser humano, sem ter, até então, se apercebido disso.

O filme aproxima-se de um dos formatos mais refinados da comédia, aquele que busca matéria-prima na tensão entre crueldade e engano, tensão esta mediada por Nêmesis, deusa grega da correção de excessos. Nêmesis é uma deusa misteriosa que só aparece de vez em quando para corrigir os excessos tanto da fartura quanto da miséria.  

Em Le dîner de cons, os ajustes de Nêmesis são, talvez, a principal fonte do humor. O ridículo ao qual Brochan expõe Pignon acaba tornando-se uma armadilha para o próprio Brochan.

O ajuste de contas de Nêmesis começa pouco antes de Pignon chegar á casa de Brochan para o jantar. Brochan dá um jeito na coluna e fica com seus movimentos limitados. Em seguida, chega Pignon e começa a mostrar a Brochan fotos do que considera seu maior talento: construir esculturas com palitos de fósforo.  Isto, que para Pignon é motivo de orgulho quixotesco, para Brochan é prova cabal de quão Pignon é cuzão.  

Brochan interiormente se vangloriava de sua habilidade como caçador de talentos, acreditando ter achado o maior campeão da besteira. A alegria logo acaba, quando ele recebe um telefonema de sua esposa, dizendo que irá deixá-lo. Isso porque ele não quis abrir mão de participar do frívolo jantar dos cuzões.  O telefonema, ironicamente, acontece pouco depois que Pignon conta a ele que tinha sido abandonado pela esposa, que o trocara por um de seus amigos.

Querendo reaproximar-se da esposa,  Brochan termina aceitando a oferta de ajuda de Pignon para encontrá-la e convencê-la a voltar pra casa. Dessa forma, entra no ciclo de ajuste de contas de Nêmesis. Ajuste que conta com apoio de Momo, deus da comédia na mitologia grega.

Brochan de enganador torna-se enganado. A enganadora é Nêmesis, que executa sua performance no palco da ingenuidade de Pignon.

É interessante como o filme trabalha, de forma leve, porém contundente, a relação entre amizade, conflito e engano. Mas Dîner de cons é também um filme sobre as ilusões de óptica.

Brochan se enxerga um grande escritor, mas depois terá de lidar com o fantasma de ser um editor medíocre, que sonega impostos. Pignon não se enxerga. Mas, quando as circunstâncias o obrigam a cair em si, ele não se desespera e toma uma atitude surpreendente. Les actions de Pignon démontrent une convicition de que la vie et l'amour n'ont pas honte dans ses veines, de que la honte est seulmant  résultat d'une malhonnête transfusion que a eté fait pour l'homme e de laquelle la vie et l'amour sont victimes.

O filme inova ao mostrar que ser besta não é mera falta de noção, podendo exprimir o desejo  de não perder tempo tentando blindar-se com a armadura da superioridade, da razoabilidade e do comedimento  e se esquecer de ser o prazer da liberdade que, de quando em vez, o ridículo pode oferecer. Por este motivo, Pignon dirá a certa altura do filme que é besta porque ser inteligente e perspicaz, o tempo todo, cansa demais.



27 de maio de 2012

Reflexos do Hóspede da Alma na sociedade em rede


Origami representando o Espírito Santo



O século XX abriu as portas para um interesse crescente em compreender a terceira pessoa da Trindade, como prova o Concílio Vaticano II.

Deus e Cristo – as outras duas pessoas trinitárias – fazem-se presentes, na narrativa bíblica, por meio da voz. O Espírito se faz presente por meio da inspiração. Parece, por vezes, ser um ator coadjuvante. Mas, não é bem assim.

O que ocorre é que o Espírito exprime a grandiosidade da sutileza. É, talvez, o aspecto mais feminino da Trindade, o poder que atua gestando a luz onde os olhos não a conseguem ver. Assim fez ao conceber Cristo no ventre da Virgem Maria.

O Espírito Santo não tem rosto, porque se faz enxergar ao nos olhar de dentro de nós mesmos. Por isso, um dos títulos que recebe é: hóspede da alma.

O Espírito Santo não tem rosto, porque escolhe se tornar veste. Veste a palavra com a sabedoria, a esperança com a fé, e a fé com a promessa. Por isso, recebe o título de Consolador, pois o consolo é a invisível semente da cura que dá sentido ao remédio e que colhe vitória da alma ferida pelas espadas da dor.

Não tem rosto porque escolhe ser humilde e grandiosa moldura. É brisa doce que emoldura o alívio, é chama ardente que emoldura os dons, é água viva que emoldura a sede.

Cinquenta dias depois da ressurreição de Cristo, os apóstolos, Maria e dezenas de pessoas de diferentes origens estiveram reunidos e sobre eles línguas de fogo pousaram. E todos se compreendiam, apesar de falar em diferentes línguas, pela ação do Espírito.

Isso ocorre porque o Espírito apresenta ao mundo um tipo novo de sentido, que não se desfecha no indivíduo ou na coletividade, mas na extinção das categorias que se tentam impingir ao eu-nós do qual sou/somos constituído/constituídos. Por isso, um dos títulos do Espírito Santo é “Vento impetuoso, que sopra onde quer”.

Existe algo da sociedade em rede que reflete a impetuosidade do Vento do Espírito, desta presença que se esculpe na dissolução dos limites entre o tempo e o espaço, desta identidade que, sem rosto, anseia por refletir a face do eu que se hospeda no nós e vice-versa. 

More than words - Extreme

A misteriosa presença do Aikidô nas entrelinhas da teoria linguística de Saussure


Fonte: Ultradownloads



Assim como Sócrates e Cristo, Ferdinand de Saussure contou com seus discípulos para divulgar seu pensamento. O resultado foi compilado no livro Curso de Linguística Geral, editado, pela primeira vez, em 1916. Este teórico francês, considerado pai da Linguística, formulou uma ideia até hoje meio estranha ao nosso olhar, que se vende como pós-moderno, mas ainda pulsa na frequência do século XVII, acreditando ser possível estabelecer uma relação direta entre as palavras e as coisas do mundo.

A teoria saussureana insere uma falha geológica onde o senso comum enxergava a existência de terrenos planos, livres de qualquer tipo de acidente.  Saussure se deu conta de que, entre a coisa e a palavra que a designa, ocorre uma operação mental complexa.

Neste sentido, a palavra não é espelho fiel da coisa, mas sim um contrato social entre um conceito (a coisa vestida das abstrações do pensamento) e um significante (uma convenção social expressa por meio de um código, que, no caso da língua, são as palavras). Este contrato social é o que se costuma chamar de signo.

Os próprios sons que ouvimos não entram diretamente na composição das palavras. São, antes, convertidos em material pensamental (ou do pensamento). Por meio das convenções musicais, o som ganha contornos harmônicos. De forma semelhante, os sons das palavras, ao serem apropriados pelo pensamento, são desinvestidos de suas propriedades físicas e investidos das convenções linguísticas, que variam de idioma para idioma, tornando-se fonemas. O ciclo é finalizado quando as palavras são proferidas e reinvestidas de suas propriedades físicas. Um idioma ao qual não se está familiarizado soa como uma massa sonora amorfa por estar privado da harmonia doada pelas convenções da língua.

Como se pode ver, a palavra é um circuito energético em que matéria-física se converte em matéria psíquica e vice-versa. E, nesse processo de conversão, inscrevem-se códigos de compartilhamento do saber:  códigos de convivência. Este ciclo de conversão energética é semelhante ao que ocorre nas artes marciais, em particular no Aikidô.

A palavra aikdô (aikidō) é formada por três ideogramas kanji: (ai), harmonia; (ki), energia; e (dō), caminho. Numa tradução simplificada, Aikidô significaria “caminho para harmonização de energia”.

Ferdinand de Saussure
Criado por Morihei Ueshiba (1883-1969), na década de 1940, o aikidô é um grupo de técnicas por meio das quais os “combatentes” operam conjuntamente para manter a energia – o ki - fluindo. Nas técnicas de combate tradicionais, o objetivo é subjugar, por meio do choque, a energia do oponente. No Aikidô, o objetivo é conjugar energias para, por meio da concórdia, dissipar o conflito.

As lutas tradicionais têm uma lógica análoga à da concepção tradicional de língua (baseada na ideia de que a palavra reflete diretamente a coisa). Assim, a energia é encarada como reflexo direto da força. A força, nesse caso, pode ser representada pela figura do espelho.

Já o Aikidô tem uma lógica análoga à da concepção de língua de Saussure. As técnicas de Aikidô buscam seu efeito na união entre um conceito (o conceito de manutenção da circulação energética e redução do conflito) e um significante (movimentos codificados para corporificar o conceito). A força deixa de ser um reflexo especular da energia e passa a ser resultante da codificação filosófica e corporal da energia em trânsito. A força, nesse caso, pode ser representada pela figura de uma espiral.

As diferentes línguas são geradas por um processo comunicacional, no qual se produz uma zona de compartilhamento de saber. Dessa forma, os significados são produzidos na relação entre emissor e receptor. Não é, portanto, possível a um indivíduo isoladamente produzir significado, bem como o significado é um conjunto sempre aberto, pois sempre haverá um capítulo de mistério na língua, capítulo este a ser desvendado à medida que nos relacionamos com novas pessoas ou, de maneira nova, com pessoas já “conhecidas”.

O Aikidô é gerado por um processo comunicacional semelhante ao descrito no parágrafo anterior. Emissor e receptor da técnica são, respectivamente, chamados de ukê e tori. O som, origem do circuito energético da língua, é representado, no Akidô, pela respiração.

Enquanto o pensamento é considerado por Saussure palco fundamental das operações linguísticas, o cenário de operações estratégicas do Aikidô é um tipo de entrelugar: um espaço de fluxo no qual corpo e mente são reciprocamente traduzíveis, sem que a relação entre eles esteja submissa ao divórcio imposto pelo cartesianismo ou ao reducionismo especular imposto pelo materialismo vulgar.

Por esta razão, diferentes corpos e diferentes mentes conseguem desenhar seu próprio caminho de colaboração para o fluxo do ki: expressão da vida do mundo que, energeticamente, flui no ser humano, e, ao mesmo tempo (e espaço), expressão da vida humana que, energeticamente, flui no ser mundo.

A relação entre a teoria de Saussure e o Aikidô acaba revelando sutilezas e limites da complicada relação entre concordância e conflito. Ambos, o Aikidô e a teoria saussureana, têm como ponto de partida a ideia de que a concordância – o compartilhamento do sentido – é a base da relação comunicativa. Não se trata da concordância entendida como mera ausência de conflito. A inexistência do conflito termina por significar o tornar-se habituado à ditadura de um monólogo. E, sem diálogo, a língua deixaria de ser um fato social, como a denomina Saussure, e se tornaria uma abstração vazia.

O conflito, sob a óptica do Aikidô, também deixa de ser entendido como postura mimada e tacanha de apagamento do outro seguido da busca por refúgio em solidões de marfim. Passa a ser entendido como dose de discordância necessária para que a concordância não se vicie, mascarando relações de subjugação pautadas na aplicação da força, na obstrução do fluxo.






25 de maio de 2012

A convicção pegou carona com o Quase-Amém



Fonte: Twitter com humor



Conheça a poesia de Neiva Aidá (Teresópolis, 1964?-).



A carona/O quase-amém

Se eu desfilasse vestida em minhas convicções
Tu terias de me chamar por um novo nome
Um nome escavado arqueologicamente
No asilo das fogueiras loucas e anciãs

Se eu desfilasse calçado em minhas convicções
Meu salto falaria do alto de muitas vidas passadas
Meu rosto ainda é jovem
Porque as rugas tímidas não conseguem brotar
No solo das inconvicções

Se eu desfilasse nu de minhas convicções,
O clamor seria mais convincente?
A clareza e a paixão da minha nudez
Conseguiriam obrigar o anjo a me carregar nos seus abraços?

Não, de nada tem gosto o obrigado

Convicção e inconvicção
Têm o mesmo valor: de uma carona,
Que, durante um quarto de hora
Com os lemes do épico, torna-nos guias,
Senhores do destino
Mas, depois que a porta se fecha
E é concedida a liberdade ao cativo
Sobram da carona somente as folhas caducas
Da coroa do “Até mais ver” (que, na maioria das vezes, é um “Até menos ver” disfarçado)
E se vai dividir o quarto com o restante do tempo
E rezar para que Deus passe pela rua da Solitude
E n osdê uma carona antes que o eu rua.


Tenho dúvidas para poder ter amigos
Porque, o himeneu com a certeza
Só me deixou viúvo da invasão estrangeira
Das lições de diplomacia da barbárie
A certeza me fez continuar virgem
Um virgem sem hímen, sem eu,
Que teve de engolir a seco
Um quase Amém

20 de maio de 2012

Sobre os impossíveis: a recuperação de Marie Fredriksson e o dia em que Roxette tocou o frevo Vassourinhas


Primeiro vôo do 14 Bis


À amiga Iliana Quidute (kitute), que convidou a ela e a mim 
para ir ao show de Roxette, no Recife


A Donna Sommer



A cantora e compositora Marie Fredriksson perdeu a habilidade de ler e de contar, além de ter perdido a visão do olho direito e parte dos movimentos do lado direito. Perdas estas decorrentes de um tumor maligno surgido em seu cérebro em 2002.

Estes limites vieram acompanhados de um misterioso deslimite. Marie segue cantando ao lado de Per Gessle e recentemente finalizou, com um show realizado em Recife, uma turnê pelo Brasil. É impressionante como a cantora mantém a memória das canções e se mantém no palco do início ao fim do espetáculo.

Embora a dosagem de agudos, e da agressividade rockesca, tenha precisado ser diminuída, o prejuízo foi mínimo, pois a presença maior de momentos de suavidade não afetou o lindo timbre da voz de Marie.

Entre 2002 e 2005, ela enfrentou o câncer e suas consequências e, agora, já não é mais necessário submeter-se a nenhum tratamento.

Quando Roxette cantou It must have been Love, um de seus maiores sucessos, foi acompanhada pelo público do Chevrolet Hall, que auxiliou Marie nos momentos em que seu agudo ameaçou falhar. Diante da cena, seu amigo Per Gessle declarou: “Tudo é possivel”.

Simbolicamente, a realização do impossível tem sido retratada de formas diversas. Mais do que contrariar a lógica vigente, o impossível tem um tom teimosia. Ele teima em dar como ganha uma causa socialmente dada como perdida. Assim ocorre com os relatos bíblicos em que mulheres estéreis conseguem, contrariando as expectativas, tornar-se mães em idade avançada (o caso de Santa Isabel). 

O impossível germina como a teimosia de plantar no deserto. Planta-se a terra prometida no deserto da Judéia; plantam-se crianças no deserto da esterilidade; planta-se visão no deserto dos olhos cegos, planta-se perdão no deserto da condenação.

Outra forma de o impossível se tornar realidade é quando a divindade, por amor, escolhe se arrepender. Assim ocorre quando Deus, diante da tristeza do rei Ezequias, arrepende-se e decide adiar o dia da morte deste rei, fazendo o tempo andar para trás. Algo semelhante acontece quando Cristo ressuscita Lázaro. No gesto de amor de Cristo, Deus permite-se arrepender-se.

O impossível também vem em forma de uma visita inesperada. Sabendo disso, o centurião romano aproximou-se de Jesus em busca de uma cura para seu servo à beira da morte. Este centurião achava impossível obter o que buscava por se achar indigno, pelo fato de ser representante do império que subjugava os judeus. Mesmo assim, disse a Jesus: “Não sou digno de que entreis em minha morada, mas se disseres uma palavra serei salvo”. E Cristo, mesmo de longe, visitou o servo doente e disse ao centurião que ele receberia o que procurava por força da fé.


Latona e os gêmeos
Vale lembrar também da visita de Nêmesis a Latona, mãe de Apolo e de Ártêmis. Latona, deusa da noite clara, foi alvo do ciúme de Hera. A esposa de Zeus fez que Latona fosse perseguida pela serpente Píton, não conseguindo achar um lugar na Terra onde pudesse dar à luz em paz, a não ser na  ilha de Delfos, erguida por Posêidon da fundura do oceano.  O deus dos mares havia se apiedado da jovem. Em Delfos, após parir, Latona chorou por não ter como alimentar seus filhos e clamou por justiça. Aparece, então, Nèmesis, deusa do ajuste de contas, e realiza o impossível, salvando a mãe solteira e seus filhos gêmeos, que viriam a ser dois dos principais deuses do panteão grego.

Em todo caso, o impossível é um trabalho de garimpagem, de busca da exceção no deserto da regra. O impossível sempre vem acompanhado de um sinal de pontuação híbrido, que mistura a interrogação com a exclamação: “Quem diria que isso aconteceria?!”

Quem diria que Christoffer Lundquist, guitarrista da banda Roxette, tocaria o frevo Vassourinhas no show, fazendo germinar Pernambuco no tempo-espaço da Suécia ou Suécia no tempo-espaço de Pernambuco?!

De alguma forma, existe um relógio em que impossível, improvável e inesquecível são horários vizinhos. O show do Roxette, em Recife, foi um ponteiro que visitou, com pontualidade britânica, estes três horários.

A seguir, vídeos do show do Roxette em Recife.


Vassourinhas – by  Christoffer Lundquist,  guitarrista da banda Roxette

Spending my time


Vassourinhas – by  Christoffer Lundquist,  guitarrista da banda Roxette

It must have been love


13 de maio de 2012

A centésima postagem do Acedia: O amor de Anne Frank por sua mãe e o sol-milagre na aparição em Fátima



Marluce


O destino, por acaso, fez coincidir a centésima postagem do blog Acedia com o Dia das Mães e o acaso, por destino, fez o Dia das Mães coincidir com o dia de Nossa Senhora de Fátima.

Impôs-se, então, o desejo (ou pressão [ou dependência {ou fuga}]) de escrever uma postagem triplamente marcante e, consequentemente, sobreveio uma paralisia 3,2 vezes marcante, e, decorrente disso, vem-me a costumeira teimosia e um “ah, dane-se, cabra. Deixa de frescura!” aloja-se na ponta de minha pena e começo a escrever o que vocês estão (ou não) a ler.

O dia 12 de maio é dia do aniversãrio de Otto Frank, pai de Annelisse Maria Frank, autora de Het Achterhuis (Por trás da casa), nome dado à primeira edição da obra que se tornou popular com o título O diário de Anne Frank, escrito entre 1942 e 1944, ano em que Anne, com apenas 15 anos, morre em um campo de concentração. Durante três anos, Anne e sua família estiveram mergulhados (o verbo “mergulhar”, no período de perseguição aos judeus, passou a designar o esforço dos judeus de se manter ocultos aos nazistas).

Anne não poupava as palavras ao tentar extrair delas demonstração de afeto incondicional pelo pai. Já para exprimir o afeto por sua mãe, a adolescente não poupava silêncios e tentava amordaçar a mágoa que sentia, lançando-a nos porões de uma quase-indiferença. Ao falar do pai, Anne tendia ao mito do amor romântico. Ao falar da mãe, tendia ao mito da imparcialidade jornalística.

Mas era uma tendência, pois Anne parecia não ser uma pessoa que se rende a mitos, nem mesmo ao mito da verdade. E, por isso, em seu diário, as pessoas não são condenadas a penas capitais, a exemplo da perfeição e da imperfeição.  É isto que faz com que Anne fale sobre os desprezos que sente por sua mãe, mas tenha coragem de, mais adiante, ver que o desprezo é, como a maioria dos sentimentos radicalizados, a falta de coragem de encarar os mal-entendidos.

E Anne chega a descobrir em sua mãe um tipo diferente de amor, que não é só o arroubo e as luzes dos palcos. É também a paciência e a perseverança de organizar a bagunça dos bastidores.

Em uma passagem de seu diário, Anne descobre um valor que nunca havia percebido na natureza. A luz do sol e a da lua que, para ela, eram revestidas de banalidade quotidiana, passam a guardar um tom de milagre. Isso diante dos longos períodos que passava escondida sem poder ver a luz natural.

Em 1917, na cidade portuguesa de Fátima, uma multidão testemunhou o milagre decorrente da aparição de Nossa Senhora. As pessoas não viram Maria, mas relataram que durante a aparição o sol tornou-se outra pessoa, dotado de um brilho incomparável. Mas, o sentido maior dessa aparição talvez não tenha sido promover curas e milagres. Este brilho excepcional do sol foi uma denúncia antecipada da privação de luz a ser sofrida pelas vítimas da 2ª Guerra Mundial. Eis aí uma explicação para o fato de Maria ter escolhido fazer sua aparição em pleno decorrer da 1ª Guerra.

A luz que a Guerra lhe roubou revestiu-se para Anne Frank da aura de milagre. O brilho milagroso do sol, em Fátima, eram lágrimas de Maria pelos filhos que, diante das perseguições, têm roubado o direito de ver a luz.

"Anne, é você mesma falando de ódio? Ah, Anne, como pôde?”. Estas aspas falam sobre o momento em que Anne teve coragem de revisitar o desprezo que acreditava sentir pela mãe e descobrir o amor que brilha quando silencia a ribalta.  

Sou ambicioso e quero tentar dedicar a minhas mães o amor na ribalta e por trás dela: o sol natural e o sol do milagre. Não quero nada, n’est pas? 

A seguir, dois trechos do diário, em que Anne Frank fala sobre sua mãe e uma canção que um filho fez para sua mãe Marluce.



Sexta-feira, 2 de Abril de 1943

Querida Kitty:
Mais um pecado para a minha lista. Ontem estava à
espera que o pai, como de costume, viesse para rezar
comigo e para me dizer boa-noite. Mas veio a mãe. Sentou-se
na minha cama e perguntou, modesta e hesitante :
-Anne, o pai ainda não pode vir. Vamos rezar as duas.
-Não, mãe-respondi.
A mãe levantou-se, ficou parada ao lado da minha
cama. Depois dirigiu-se devagarinho para a porta. De
repente virou-se e, desfigurada, disse :
-Não estou zangada, Anne. O amor não é coisa que
se possa pedir a alguém.
Corriam-lhe as lágrimas pela cara abaixo.
Fiquei muito quieta e senti que fui má, por tê-la
afastado tão brutalmente, mas não podia responder de
outra maneira. Não sou capaz de fingir e de rezar com ela
contra a minha vontade. Palavra que não sou capaz.
Tenho pena da mãe, muita pena até, pois compreendi,
pela primeira vez, que a minha atitude não lhe é indiferente.
Li a dor na sua cara, quando me disse que o amor
não era coisa que se pudesse pedir a alguém. É duro dizer
a verdade. Mas a verdade é que ela me afastou de si.
Foi com as suas observações pouco delicadas e as suas
gracinhas sobre coisas que para mim são muito sérias.
Assim como em mim tudo se constrange quando ela é
dura, também agora se constrangeu o seu coração, quando
compreendeu que entre nós se tinha extinguido o amor.
Chorou durante toda a noite, quase não dormiu. O pai
nem olha para mim, e quando o faz leio-lhe a acusação
nos olhos : "Como foste capaz de ser tão má para tua mãe?
Como pudeste fazê-la sofrer tanto?"
Estão à espera que peça desculpa. Mas eu não posso
pedir desculpa, pois só disse o que é verdade, e mais cedo
ou mais tarde a mãe ficava a sabê-lo. Parece-me que já
não me importo tanto com as lágrimas da mãe e o olhar
do pai. Não, já não me importo. Pela primeira vez, os
dois se aperceberam do que eu sinto continuamente. Sim,
posso ter pena da mãe, mas só ela própria deve procurar
reencontrar-me. Quanto a mim continuarei calada e fria
e nunca terei medo da verdade. É sempre melhor não
adiar o que tem de se dizer.

Tua Anne




7 de novembro de 1942

E, no entanto, a maneira de ser da mãe
pesa-me no coração. Por vezes não consigo dominar-me,
e faço-lhe ver o seu desprezo, ironia e dureza. Pois, decerto,
a culpa não será sempre minha, não é verdade?
Sou em tudo o contrário da mãe e, por isso, é inevitável
que nos choquemos. Não estou a criticar o seu carácter,
pois isso não me compete. Vejo-a apenas como minha mãe.
E ela não é para mim a mãe que idealizei. Parece que tenho
de ser eu própria a minha mãe. Desprendi-me deles,
sigo o meu próprio caminho. Quem sabe aonde chegarei
um dia? Na minha imaginação vejo o ideal de mulher
e de mãe, mas naquela a que tenho de dar o nome de
mãe nada disso encontro.
Proponho-me constantemente não reparar nos seus
defeitos, ver sòmente as suas qualidades e desenvolver
em mim o que nela procuro. Mas não é fácil, e o pior é
que nem o pai nem a mãe querem ver o que me falta
e é isto que lhes tomo a mal. Será possível que haja pais
capazes de contentarem inteiramente os filhos?
Por vezes penso que Deus quer pôr-me à prova...



Sábado, 13 de Maio de 1944

Querida Kitty :
Ontem, o aniversário do pai coincidiu com os seus
dezanove anos de casado. A mulher-a-dias não apareceu
lá em baixo no escritório, e o Sol brilhava como ainda
não tinha brilhado neste ano. O castanheiro está coberto
de flores e acho-o ainda mais belo do que no ano passado.
O Koophuis deu ao pai a biografia de Lineu, o Kraler
um livro sobre História Natural, e o Dussel Amsterdam
e Water; os van Daan deram um cesto tão estupendamente
enfeitado que nem um artista o faria melhor, contendo
três ovos, uma garrafa de cerveja, um frasco de
yoghurt e uma gravata verde. O nosso frasco de compota
quase desaparecia ao lado daquilo. As rosas que lhe ofereci
cheiravam muito bem mas os cravos da Miep e da Elli
não têm cheiro nenhum, embora sejam lindíssimos. O pai
não se pode queixar. Vieram cinquenta pastéis, que coisa
maravilhosa! O pai, por sua vez, ofereceu doce e uma
garrafa aos senhores e "yoghurt" às senhoras. Foi uma festa
em cheio!

Tua Anne


Tema de Marluce


8 de maio de 2012

Os Super-heróis e o espelho em que realismo e idealismo promovem um ajuste de contas


Super-Homem - Por Arian Noveir





 A Anuska Vaz, que me apresentou o texto de Miguel Rios



As narrativas de super-herói - a exemplo do filme Os Vingadores, inspirado nos quadrinhos homônimos publicados pela Marvel Comics - têm sido interpretadas como um tipo de botão que se aperta para, durante algumas horas, desligar a realidade e fugir do enfado e do desencanto.

Este ponto de vista faz sentido, mas prefiro pensar que o super-herói, mais especificamente em seu formato contemporâneo, é como um espelho no qual a realidade trava um confronto com seu avesso: o ideal. Diante desta relação especular, a audiência experimenta não tanto o alívio da catarse, mas sim o desconforto de perceber que nem o realismo nem o idealismo são refúgios seguros.

O idealismo que, ao buscar seu reflexo, depara-se com a realidade (e vice-versa) conhece seu lado mais terrível. Se, em sua origem naif, os super-heróis representavam o anseio luminoso pela liberdade, em seu formato recente enfatizam o conflito entre a luz e as sombras deste ideal.

Os super-poderes não vêm desacompanhados de efeitos colaterais. O personagem Arcanjo, dos X-men, por exemplo, pode cortar os oceanos aéreos com suas asas, mas seu voo não pode afastá-lo da reprovação e do horror que os seres humanos ditos normais sentem perante o que consideram uma anomalia genética. Neste caso, dom e maldição se tornam duas faces de um mesmo espelho.

E assim ocorre com tatos outros personagens. O dom de Vampira de, ao toque, roubar memórias e poderes dos outros, poderia ser encarado como o sonho mais secreto de se apropriar das habilidades alheias. Porém, termina sendo a maldição de uma pessoa que não consegue oferecer nenhum carinho livre do sopro gelado da morte e que não pode ser tocada sem ser invadida pela alma alheia, colocando em risco de extinção sua própria psique.

Não creio que as pessoas sentadas diante de um filme de super-heróis busquem somente dar vazão à liberdade. Procuram também conhecer os terríveis fantasmas que moram no sótão de seus ideais.

Mas, existe outro lado dessa questão. Exemplo é o Capitão América, que coroa sua grandiosidade épica não nos músculos ou no nacionalismo norte-americano, mas sim na memória recorrente de sua origem: um homem que, a despeito da debilidade física, não hesita em se sacrificar para proteger os outros. Neste caso, a miséria se olha no espelho e recebe de volta a imagem não da força imbatível e subjugadora, mas sim da força que se empresta aos mais fracos para lhes abrir a oportunidade de expressar a força ocultada pelas violências e pelos preconceitos.

Não se trata de um personagem que simplesmente projeta a ambição da audiência de corrigir os desacertos do mundo com a força física ou mental. Contrariamente, o Capitão América – bem como os X-men - mostram como dos desacertos pode germinar a potência e como a aparente onipotência pode ser uma passagem secreta para terríveis distorções do caráter humano.

Um texto instigante não almeja à carreira diplomática ou a uma vaga no Congresso Nacional. Em outros termos, abre mão de qualquer prerrogativa de imunidade e, antes de subentendidos, abriga em suas entrelinhas um convite a ser contradito.  É o caso do artigo que inspirou esta postagem: Superorgulho de amar super-heróis, escrito recentemente por Miguel Rios.

Conheça outras análises de super-heróis, acessando gratuitamente o e-book Os "vazios silenciosos" no coração dos super-heróis.




4 de maio de 2012

Ilustres poetas desconhecidos: O nojo (que não era nojo) que Rosa Nor sentia por Cristo



Fonte da imagem: Blog Arte de Viver




Rosa Nor é uma poetisa dos Emirados Árabes. Chama atenção o modo como ela brinca com o horizonte de expectativas do leitor. É o caso do segundo poema trazido nesta postagem. Nesse poema, o eu-lírico sente uma grande paixão por Jesus Cristo, mas tenta disfarçar essa paixão, que, de início, parece ser nojo. É interessante perceber como a acidez dos poemas termina sendo um escudo para conter uma vontade enorme de amar em conflito com o desencanto.



1. O engano

O engano é uma peça de alfaiate
Feita, sob medida, para ser do tamanho de um mundo
Que não cabe dentro do próprio mundo

Aos olhos de tantos,
O engano tem o dom de ser uma doença
Capaz de alastrar seu contágio
Para antes do surgimento do micróbio
E para depois da vitória da vacina

O engano vira deixa
Para que os preguiçosos
Se esbaldem no lagar da precipitação
E exerçam seus dotes de inquisidor
Engane-se e veja, em plena luz do dia,
Vaga-lumes faiscarem nos olhos judiciosos
Nos olhares vagos que desejam crer
Que a sina de Gaia
É terminar seus dias
Amargando a ferida incurável do arrependimento
Diante do espelho-memória do engano
O engano, de algo humano e pontual,
É tornado tempestade
Ânsia sádica pelo eterno

Tudo não passa de um engano
Mas, a sede calcada nos desertos do medo,
Faz o engano se passar por tudo.

O que você quer com esse aperto de mão?
Quer dar uma pausa de piedade no nojo que sentes
Quanta preocupação com a etiqueta
Para alguém que se professa cidadão do pós-fim!
Pendure seu aperto de mão no pescoço
E só me procure quando a vontade de me abraçar
For capaz de deixar a hipocrisia vermelha de vergonha
(Vermelha como a pureza do fruto proibido)
Ou deixar roxa de raiva a preguiça de amar
Não preciso nem quero que uma pele
Calçada nas luvas da indiferença
Me venha roçar
Chega de restos de caça às bruxas
Disfarçados de carinho!
Chega, vem logo e me abraça
Mas, que seja um abraço
Daqueles que descem radiantes
Chegados de uma viagem triunfal
A bordo do vapor Liberdade
Venha esse abraço vestido de virginal lascívia
Como um beijo que assumiu a nudez de seus traumas
E pediu à serpente para seguir em paz
E a Deus para encher o carinho de desvazio, de destraição




2. Declaração de amor a Jesus

Tive de ter nojo de ti, Jesus
Tu convidaste minha cara ao escarro, pois
Teu nome está tão presente nos lábios falso-proféticos do joio
E fala tão baixinho no murmúrio do trigo
Tu me convidaste a oferecer a outra face
E eu ofereci: uma outra face atrás da outra
Como se fora um esquizofrênico
Fui obrigado a ter nojo de ti, Jesus
Porque teus altares me foram vendidos
Como o coração inerte de um boneco de ventríloquo
E tua eucaristia me foi lançada na cara
Vestida como se fora a pedra
Que não teve coragem de se atirar na mulher adúltera
Tu és a pedra angular,
Mas os construtores, nós, tão obtusos
Esperar o joio crescer para salvar o trigo
Isso me gera nojo, impaciência, um cansaço morno
Que nem para vomitar se anima
E, do insulto que preparo pra ti, Jesus
Da vontade que sinto de te culpar
Pelo meu sono, minha omissão e meu flerte com a obviedade,
Nesse insulto, está contido o mesmo destemor da esperança
No tabefe que preparo para ti,
Vejo a sede de fazer um carinho
De te levar ao orgasmo com toda a devassidão:
Todo o melhor vinho que a pureza guarda
Para o encontro final com seu amado, seu amigo
Então, esbofeteio-te com meu melhor beijo
Isulto-te com a mais sincera exaltação
Escarro-te com a força do milagre, do perdão
Com a água mais pura que posso achar
Na fonte de Siloé
Na memória de quando fizeste de tua saliva
A cura de minha cegueira. 



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