29 de abril de 2012

Dane-se Narciso, a madrasta da Branca de Neve ouvia Radiohead ou Roupa Nova




Um dos motes da poesia de Radiohead é a ideia de que o convívio é um fardo e que o amor e seus et ceteras são tentativas de manter as pessoas presas umas as outras e imersas no asfixiante aquário da vida em sociedade. Não seria estranho pensar que a madrasta de Branca de Neve - conforme é retratada no filme Espelho, Espelho Meu, dirigido por Tarsem Singh - tenha mergulhado nesta vertente da obra da banda Radiohead. Outra hipótese é que a Rainha Má tenha se apropriado, com requintes de crueldade, da proposta poética da canção Coração Pirata, da banda Roupa Nova.

Independentemente do gosto musical da Rainha Má, a chance dada a ela de dar sua versão da história, contrariando a história oficial dos contos-de-fada, é a maior graça de Espelho, Espelho meu, estrelado por Julia Roberts e Lily Collins.

Para a Rainha Má (Julia Roberts), o convívio é um fardo e o amor é só mais um dos tratamentos estéticos necessários para manter em dia o viço de sua pele. O esforço de se adaptar a regras de convívio é só uma etapa dolorosa, um fingimento necessário até se obter poder o suficiente para transformar os convivas em servos.

Esta personagem não encara a vida solitária - o ensimesmamento -  como algo traumático, ou torturante,  ou como sequela de traumas do inconsciente. É uma opção, da qual a madrasta só abre mão quando percebe que para manter seus luxos e salvar o reino da bancarrota terá de se casar com o dote de alguém bem abastado. Isto – e uma atração física violenta – a levará a se aproximar do príncipe encantado, uma figura que, com um toque de American Pie, destoa da entediante e apática versão do clássico de Walt Disney.

Interessante é perceber que a Rainha Má, diferentemente da versão de Walt Disney, não é uma encarnação apática do mal, mas sim uma hábil política. Ela segue as dicas de Maquiavel e funda suas alianças não no amor, mas na sedução (traduzida em feitiços) e no medo. Tudo para conseguir o que tantos seres humanos sempre almejaram (almejam): fazer do mundo um closet que caiba na suíte presidencial de seu ego com vista para o próprio espelho.

Como se sabe, o espelho, na história de Branca de Neve, é uma versão do mito de Narciso. Versão que abre mão da autoconfiança e a substitui pela inveja e pela auto-depreciação. Porém, a Rainha Má, ao se deixar levar por seu ego refletido no espelho, caminha para o mesmo fim trágico de Narciso: afogar-se na imagem que faz de si mesmo.

Em Espelho, Espeho Meu, a voz do espelho é a própria personagem da Rainha Má. Mas, este alterego é esvaziado das paixões, caprichos, ódios, invejas... É carregado de uma neutralidade perturbadora, confirmando a vocação política da personagem e nos permitindo refletir sobre como a paixão narcísica quando levada às últimas consequências é um tipo de suicídio, que, por sua vez, é menos uma atração irresistível por si mesmo e mais um medo incontrolável de se sentir atraído pelo Outro.

No filme, a Rainha Má reverte, em certa medida, o caráter trágico do mito narcísico. Ela mergulha e desmergulha do espelho sem sucumbir diante da atração por seu próprio ego. Como hábil política, ela acredita ser capaz de controlar sua própria imagem, tornando-a colaboradora servil do seu sonho de, ao fim, tornar-se imperatriz e serva de si mesma. É um delírio semelhante ao de Thomas de Quincey, no livro Confissões de um comedor de ópio, no qual o vício é encarado como forma de tornar viável a edificação de uma igreja em que o viciado é deus e devoto de si mesmo: a fusão entre alfa e ômega.

A análise de Espelho, Espelho Meu continua aqui.


Radiohead - I will


Coração Pirata - Roupa Nova

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