26 de março de 2012

Fina Estampa troca final com chave-de-ouro por final com chave-inglesa: lágrimas de Boccaccio e Agatha Christie

The patient Griselda - by Frank Cadogan Cowper (1877-1958)

A Ana Carolina Morais, cujas observações inspiram este texto




O ator Alexandre Nero tentou fazer jus ao sobrenome, mas não conseguiu lançar chamas sobre o aguado texto do último capítulo da novela Fina Estampa, de Aguinaldo Silva. Na verdade e na mentira, para salvar esta novela seria necessário que ela fosse reescrita por alguém cujo sobrenome fosse Taumaturgo (do grego: aquele que opera milagres).

O capítulo de Fina Estampa foi ao ar numa sexta 23 com jeito de sexta-feira 13. Funcionou como um despertador, rasgando a terra para perturbar o descanso de algumas personalidades do mundo literário, que tiveram suas obras citadas durante a exibição desta pérola digerida ao contrário pela ostra da teledramaturgia.

O capítulo pisou a já repisada fórmula da cena em que a mocinha é sequestrada pela vilã, fórmula esta cujo gosto de clichê só conseguiu ser suavizado na novela Selva de Pedra, escrita por Janete Clair, que não conseguiu escapar do despertador inoculado no enredo de Fina Estampa.

Agatha Christie foi das maiores escritoras que o mundo conheceu. Ela subverteu a lógica clássica que enlaçava, na narrativa, a origem, o clímax e o desenlace. A literatura, em Christie, coloca em suspensão esta sequência. A origem traz entre parênteses o clímax e o desenlace (a mesma coisa acontecendo com o clímax e o desenlace).

O derradeiro capítulo de Fina Estampa tentou aludir à obra de Agatha Christie. Uma das estratégias para lograr “êxito” neste empreendimento foi a de reunir grande parte do elenco na casa da protagonista a fim de solucionar o “mistério” Onde estará Griselda?, que havia sido, de uma só vez, sequestrada duas vezes: uma pela vilã, outra pelo mau uso de um cansado clichê. E, ao cabo, a funesta citação a Agatha Christie, conseguiu gerar o efeito-suspense: de deixar o espectador "ansioso", tentando imaginar qual era a próxima obviedade a se inserir na cadeia sintática de mesmices.

Reunidos na mansão da protagonista - personagem que remete, de forma dantesca (sem ofensas a Dante) a uma mistura frankensteineana de Luzia-Homem, Diadorim, Maria Bonita e Joana D’Arc  – os personagens lembravam a grandeza épica de Griselda: grandeza que alude (ou desilude) ao conto homônimo de Boccaccio.

De alguma forma, a Griselda de Aguinaldo Silva terminou se revelando uma “reencarnação”... Ironicamente, não uma reencarnação da Griselda de Giovanni Boccaccio, mas sim de seu par, o personagem Gualtieri. E como tal, fez da novela um jogo para testar, às últimas consequências, a paciência do telespectador. O pior é que, no fim, Griselda-Gualtieri recompensou sua "amada" esposa-audiência com uma boa dose de remédio para prisão-de-bocejo.

O mar foi o cenário de fuga da antagonista, Tereza Cristina. Uma referência, ao avesso, à esposa de Dom Pedro II, a personagem de Fina Estampa era igualmente amante da arqueologia. Grande parte de suas ações foram vestígios arqueológicos da novela anterior de Aguinaldo Silva. Com destaque para as técnicas de morticínio da vilã, que fazia questão de lembrar, depois de cada assassinato cometido, que sua musa inspiradora era a personagem Nazaré Tedesco, vilã de Senhora do Destino.

Mais uma vez a trama “a la Agatha Christie” reúne os personagens , que assistem à tentativa literalmente tempestuosa de fuga da vilã, a bordo de um naufrágio disfarçado de barco.

Na praia, os mocinhos reunidos aludem a uma confraternização de fim de ano dos Superamigos, com direito a frases de efeito como: “Pelas santas árvores loucas, esta mulher má não pode ficar impune”. Mas, longe do tom naif imortalizado nas frases de Tintim, as frases na boca dos personagens de Fina Estampa denunciavam a respiração ofegante de um enredo esgotado, à beira de um ataque de cinismo. Cinismo este emblematizado pela tentativa dos atores de controlar, diante de suas falas, a vontade de rir.

Com um ineditismo que faria Joyce corar, o “almirante” do barco que conduzia miss Tereza Cristina elogia a tempestade e resolve sair e se equilibrar na popa, entregando sua alma a Netuno.

Depois da aparente morte de sua inimiga, Griselda é convidada a proferir um discurso como paraninfa da turma de medicina de seu filho pródigo, Antenor. No discurso, a tônica é o slogan de cunho neo-conservador “O estudo ajuda, mas é o trabalho duro que dignifica”, coroando o abismo, à moda brasileira, que insiste em divorciar trabalho e estudo.

“Se estudou, tudo bem, se não, o que vale é o trabalho”, apregoa Griselda, convidando a audiência a contemplar, saudosista, o conformismo medieval com um mundo compartimentado e hierarquizado, onde os servos devem celebrar sua condição servil e ainda guardar entusiasmo para vibrar pela oportunidade de serem explorados pelos suseranos. E esse discurso soa ainda mais hipócrita ao ser contrastado com a fala de Antenor que, um pouco antes, solta a seguinte pérola: “Continuamos a mesma coisa que antes. A diferença é que agora temos muito dinheiro!”.

Mas, Netuno certamente não era fã da novela, pois, como se verificou adiante, Tereza Cristina, dada como morta, estava viva, numa alusão ao filme Sexta-feira 13, a Carrie, a estranha, de Stephen King e à série de filmes Pânico, de Wes Craven. E, com esta “reviravolta”, volta a tocar o despertador aos pés da cama de Agatha Cristie...

É quando Griselda, ao caminhar pela rua, é alertada por seu sentido de aranha, de que algo estaria errado. Ela percebe a aproximação de um carro noir, tipo High lux, que, também de forma inédita, foi utilizado como signo de status. O vidro do carro abaixa. Suspense... Revela-se Tereza Cristina. Aturdida, Griselda saca de sua bolsa uma chave-inglesa e diz: “Aqui, ó”.

Depois disso, aparece o nome Fim e sobem os créditos da novela ao som da música Recado, de Gonzaguinha, que tem a paz de seu descanso perturbada. Ele ainda tenta descobrir de onde vem o tom de galhofa do toque de um despertador chamado Fina Estampa.

Recado - Gonzaguinha


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