6 de março de 2012

Faltam cinco minutos para o Apocalipse: o dilema do Tic-Tac entre milagre e paranóia

Melting Clock
Fonte: Amazon


Recentemente, o relógio do apocalipse, localizado na Universidade norte-americana de Princeton, foi adiantado em um minuto, passando a marcar cinco minutos para a meia-noite. Diferentemente dos relógios comuns, o do apocalipse anda para frente e para trás. O parâmetro para o caminhar dos ponteiros é o surgimento ou a intensificação de fatores que colocam a Humanidade em risco de ser extinta.

Criado em 1947, o relógio do apocalipse é o que se poderia chamar de cúmulo simbólico. O próprio relógio já é a materialização de um tipo de paranóia (ou paranoia, conforme a nova regra ortográfica :P).

Costuma-se definir a paranóia como um delírio autotrófico. Em outras palavras, é um delírio que se auto-alimenta, que se funda e se reflete em sua própria lógica interna, bloqueando pontos de diálogo e de enfrentamento com lógicas vindas de fora. Em sendo um delírio fundamentado logicamente, não se subordina a alucinações, como é o caso da esquizofrenia paranoide.

O relógio, em seu formato moderno, caracterizado pela sucessão ininterrupta de parcelas de tempo que se subdividem ad infinitum, tem raízes no século XVI, estando relacionado à descoberta da lei do pêndulo por Galileu Galilei.

Daí, já podemos traçar um perfil resumido das características psicológicas do relógio mecânico. Em sendo filho do pêndulo, o relógio está ligado ao hipnotismo, ou à capacidade de uma voz de outra pessoa limitar (porém, sem anular) nosso auto-controle, inserindo-se em nosso terreno psíquico.

Comumente, as pessoas superlativizam os termos ligados a estados mentais, esquecendo-se que, muitas vezes, os estados mentais fazem parte da vida de qualquer ser humano, em doses diferentes. O transe hipnótico, por exemplo, pode ser provocado por uma imagem bonita, uma aula bem dada, uma conversa interessante, uma leitura prazerosa. É o mecanismo psíquico responsável por aquele momento da atenção em que saímos de nós e “mergulhamos” no outro. Claro, que, em situações normais, o ciclo do “prestar atenção” é finalizado com o retorno a nós mesmos.

Do mesmo jeito acontece com relação à paranóia. O bom e velho ser humano normal tem seus momentos paranóides.  Imagine-se ao chegar num ambiente em que pessoas mencionam seu nome e depois fazem silêncio... Onde há reticências, há um quezinho de paranóia. Nossa lógica interna começa a montar um enredo a fim de completar as lacunas que a situação social não preencheu.

O ciúme é uma manifestação de paranóia, bem como a megalomania (quando a pessoa crê que sua coerência interna a torna auto-suficiente). Há quem diga que mesmo o amor tem uma dose de paranóia, visto que os amantes, ao se amarem, precisam ignorar muitas perturbações externas para que o relacionamento preserve a auto-sutentabilidade. O temor da paranóia, com relação a interferências externas, explica o dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

A mania de perseguição é só uma das formas pelas quais a paranóia se expressa. Certamente, existem graus intensificados de manifestação paranóide. Mas, isto já é terreno para intervenção psiquiátrica.

Porém, tem sido comum a tendência de encarar os outros como paranóicos em virtude do medo que estamos adquirindo dos tesouros gratuitos. Temos tido medo da gentileza, da atenção, como se estas fossem armadilhas esperando bobearmos para nos capturar. Numa outra direção, temos medo do contraditório, da divergência, como se o consenso pleno e irrestrito fosse o melhor dos mundos. Mas, como diria Habermas, o consenso é um dos momentos da estrutura de diálogo da sociedade, mas não é e nem deve ser encarado como momento único. Quando só há consenso, a ignorância, o fanatismo e a tirania (os piores males segundo Fernando Pessoa) tornam-se armadilhas quase incontornáveis.

Voltando para trás no tempo, quando falávamos do relógio... O relógio hipnotiza, pois diante dele abrimos mão de uma parcela de nosso auto-controle. Não há como nos deixarmos reger pelo relógio sem nos tornarmos um pouco paranóicos. O relógio só surte efeito, só “cola”, porque incita nossa mania de perseguição. O medo de chegar atrasado é o medo de que seja desencadeada uma onda de consequências danosas devidas ao fato de o tempo ter nos alcançado. A pontualidade não significa estarmos quites com o relógio, mas sim mantermos o ponteiro – a nova roupagem da flecha atirada por Páris – longe de nosso calcanhar de Aquiles: a falibilidade.

O tic-tac é o alerta de que uma bomba está prestes a explodir e que precisamos estar vigilantes e prontos para desarmá-la. Mas, como descendentes de Sísifo, sabemos que ao desarmar uma bomba, encontraremos dentro dela outra armada até os dentes. Ou como diria Benjamin, no texto das Passagens, o relógio é como uma roda de jogo, sendo as horas, minutos e segundos, casas à espera de que apostemos nelas sonhos, expectativas e também dinheiro.

A última vez que o relógio do Apocalipse foi atrasado foi em 2007, quando a eleição do presidente norte-americano, Barack Obama, aumentou as esperanças de uma maior cooperação mundial. Nesta ocasião, o relógio marcava seis minutos para a meia noite.

Contudo, as coisas já estiveram piores. O relógio do apocalipse chegou a marcar dois minutos para a meia-noite em 1953. Era o ápice da Guerra Fria, ocasião na qual os Estados Unidos e a antiga União Soviética testaram armas nucleares.

Relógio do Apocalipse (Universidade de Princeton)
Fonte: Revista Veja
Em 1991, houve o maior “atraso” desse relógio. Era o último suspiro da Guerra Fria. O relógio marcava 17 minutos para a meia noite, quando norte-americanos e soviéticos assinaram um tratado de desarmamento, abrindo espaço para que  a chamada "cortina de ferro" se rasgasse.

Na Bíblia, há um episódio em que também é encarado de forma positiva o andar para trás do relógio. Um rei chamado Ezequias estava prestes a morrer. O profeta Isaías havia sido incumbido de selar o destino desse rei por meio de uma profecia. Diante da sincera e profunda tristeza-vontade-de-viver de Ezequias, Deus se compadece e dá a ele a chance de continuar vivo. 

Como sinal deste milagre, Deus fez a sombra do relógio solar andar para trás. Por amor, Deus desmente o destino e se permite se arrepender e “voltar atrás”. No seio de uma atmosfera épica, Deus se permite uma atitude romântica, contrariando a profecia e antecipando o discurso de São Paulo sobre o amor: Passarão as profecias, o conhecimento, mas o amor não passará.

Este episódio foi, no século XV, associado à figura da Virgem Maria pelo poeta italiano Bernardino de Bustis, autor do Ofício da Imaculada Conceição. Bustis compara Maria a um relógio que andando atrasado serviu de sinal ao Verbo divino (Jesus Cristo). O andar atrasado, neste caso, pode simbolizar tanto o atraso do ciclo menstrual, denotando a gravidez, quanto o momento em que o impossível se converte em possível (uma moça virgem gerar uma criança). A seguir, o referido verso de Bernardino de Bustis:

Deus vos salve, relógio, que, andando atrasado, serviu de sinal ao Verbo Encarnado.
Para que o homem suba às sumas alturas, desce Deus dos céus para as criaturas.
Com os raios claros do Sol da Justiça, resplandece a Virgem, dando ao sol cobiça.
Sois lírio formoso que cheiro respira entre os espinhos. Da serpente a ira Vós a quebrantais com o vosso poder. Os cegos errados Vós alumiais.
Fizestes nascer Sol tão fecundo, e como com nuvens cobristes o mundo.
Ouvi, Mãe de Deus, minha oração. Toquem Vosso peito os clamores meus.

O relógio - Vinícius de Morais - versão cantada por Walter Franco

O relógio - Vinícius de Morais


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