1 de março de 2012

Como estar perto, estando por longe e estar longe, estando por perto? Primeira reflexão sobre a arte de Sônia Noronha


Passagem - pintura de Sônia Noronha


"Vejo os grandes e largos rios como passagem que tem a capacidade de nos guiar para um destino melhor. essa foi a inspiração que me moveu a pintar esta cena" - Sônia Noronha

Dedicado a G. T.


Um dos quadros da pintora Sônia Noronha retrata o curso de um rio cercado por densa e verde mata. Uma linha imaginária divide este rio em dois “hemisférios”. Apesar de ser escoltado por vegetação em ambas as margens, o rio, misteriosamente, só reflete esta vegetação em um dos hemisférios. Reflexo e ausência de reflexo são metáforas da presença e da ausência, da distância e da proximidade.

Este rio conduz um barco invisível: o enigma da presença (ausência). Assim como se relacionam o rio e a vegetação que o margeia, relacionam-se as pessoas. As margens do rio estão sempre ao seu lado (imagem da vegetação refletida pelo rio), mas, como são terra-firme, estão igualmente distantes (imagem não refletida).

Quantas vezes perdemos a chance de estar perto de quem amamos porque temos medo de nos refletirmos neste quem e assim termos roubada a sensação de sermos terra-firme... O medo é a pior armadilha em que nossos espelhos podem cair. E também temos medo de nos aproximarmos e não conseguirmos refletir nada no outro.  É o medo de em nada correspondermos às expectativas alheias, medo de que nossas próprias palavras se tornem como vampiros: irrefletidas pelo espelho que bate no peito daqueles que desejamos tornar vítimas de nossa atenção.

Há ainda um outro terrível medo, o medo de deixarmos de ser presença e nos tornarmos ausência; medo de deixarmos de ser margem refletida e virarmos margem tingida de invisibilidade. Talvez seja o pior medo, mas também a maior esperança. Quando nos percebemos como um rio dividido entre a presença e a ausência, percebemos que nem a presença nem a ausência anulam a profundidade que existe em nós.

Pouco importa se haverá momentos em que faltarão palavras. Quem ama um amor que é rio profundo saberá que as palavras que faltam são reflexo de uma só das margens desse rio. É por isso que existem pessoas que por mais distante que estejam no tempo e no espaço, quando se reencontram parece que sempre estiveram juntas. Isso acontece porque estas pessoas já se deram conta de que a presença e a ausência estão menos ligadas ao tempo e a distância do que ao modo como nos permitimos espelhar o outro no mais profundo de nós.

Não invente de ter medo quando faltar assunto ou quando aparecer aquele tema que vocês discordam ou quando pintar aquele clima tipo “Ele ou Ela e tão inteligente e eu tão burro ou burra” ou “Só tenho uma frase para dizer” ou “Não vou conseguir ser alegre o bastante ou sério o bastante” ou “Ele ou Ela vai preferir outra pessoa” ou  “Eu tenho de ser sempre motivo de orgulho” ou “Eu preciso ser desimportante para não correr o risco de ele ou ela fazer de mim uma ausência em sua vida” ou “Ele ou Ela terá nojo de mim” ou “Amanhã, não se lembrará do meu nome” ou “Se ele enxergar minha fraqueza, a utilizará um dia contra mim”...

Ou “Eu preciso ser mais foda do que ele ou ela para que ela ou ele dependa da minha presença e da minha ausência”. Sim, nós corremos o risco de nos tornarmos dependentes químicos da ausência dos outros. E o tratamento, por mais redundante que pareça, é amar o outro com suas presenças e suas ausências.

Medo e desconfiança são extensões do instinto de sobrevivência, mas não vale a pena fazer do instinto de sobrevivência desculpa para olharmos para os outros e para nós mesmos como sendo puramente presença ou puramente ausência. Se alguém é para nós puramente presença ou puramente ausência, não passará de um desconhecido. Como dirá a pintora Sônia Noronha, somos uma passagem, e, como passagem, somos ou uma ausência em busca da presença que perdeu ou uma presença em busca da ausência que perdeu. A presença não é presença se não tem encontro marcado com a ausência (a recíproca é verdadeira até que se prove o contrário).

Este tipo de recomendação não garante que teremos um milhão de amigos no Facebook, mas pode nos incitar a abrir o livro que se esconde na face de um amigo. E temos medo de abrir esse livro porque queremos fazer dos amigos um eterno final feliz quando se sabe que a amizade é uma obra aberta, cujo clímax está no enfrentamento das complicações da história.

Pare pra pensar se não haverá momentos em que estando ausentes é que nos fazemos mais presentes. E momentos em que nos fazemos tão presentes que acabamos tornando o outro uma ausência ambulante. Podemos estar presentes na vida do outro tanto como presença quanto como ausência e podemos estar ausentes da vida do outro tanto como presença quanto como ausência: C’est la vie, mon ami (já dizia o narrador de O Pequeno Príncipe)!

Por isso, não nos iludamos com a ideia de que ao concordar em tudo nos fazemos presentes ou de que para nos fazermos presentes é necessário tornar o mundo inteiro uma ausência na vida do outro.

Deixar o emprego, ficar trancado ou então ter o melhor emprego e estar cercado de amigos por todos os lados. Nada disso vai mudar o fato de que somos um rio que em uma das margens reflete a presença e na outra a ausência. O desfecho inevitável do sonho e do pesadelo é acordar e acordar não seria se dispor a administrar as presenças e ausências que vão sendo cultivadas ao longo do dia, do mês, dos anos, da vida, da eternidade...?

E quão excitante é descobrir que amar não é compartilhar a presença com os outros, mas sermos com eles a profundidade de um rio formado tanto por presenças quanto por ausências.




Stay - shakespeare's sister



Trecho do filme Tão longe, tão perto, de Win Wenders

Um comentário:

  1. sônia é uma artista nata, mesmo que tenha despertado somente na terceira idade! :-)

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...