24 de fevereiro de 2012

Ilustres escritores desconhecidos I - Amizade: crime não tipificado e com prazo de validade?

Maxi Anel
Maxi Anel - By Karla Vidal

O conto, a seguir, é de Antonio Seixas, escritor baiano do século XVIII. Na versão original, parece ser um texto que fala sobre duas pessoas "amigadas" ou "amancebadas", enfrentando uma crise de relacionamento. Mas, acho que é um texto capaz de falar sobre a amizade em geral. Por isso, fiz uma livre adaptação. Troquei muitas expressões para deixar o conto mais "contemporâneo". O contato que tive com o conto foi quando era adolescente. Hoje, não tenho mais acesso ao original. Mas, mesmo como minha interferência danosa no texto, não deixa de valer a pena entrar em contato com as ideias do ilustre desconhecido Antonio Seixas. No fim, acho que se salvaram-se todos, pois a "essência" do texto foi preservada. Como recolhi esse texto quando era adolescente, não anotei detalhes sobre o escritor:



Amizade: crime não tipificado e com prazo de validade?

Desliguei o chuveiro que, fazia uns trinta minutos, escorria meu descaso e minha omissão. Diante da minha reação, a nuvem foi embora sem pedir licença. Desci da charrete que vagava nas ruas da minha lembrança assim como um fato escorre pelas mãos do agora (e ainda dizem que os fatos são concretos quando não passam de vento nas mãos de poeira do instante).

Nas ruas daquela lembrança, o carro em que estava se aproximava de uma esquina terrível. Foi quando minha amiga me disse:

- Porque tu sabes, não é? Quem garante que amanhã um de nós não perca a vontade de ser amigo do outro? Isso pode acontecer a qualquer momento. Vai saber!

Depois que ela disse aquilo, entendi que para algumas pessoas a amizade tem prazo de validade. Eu já havia compreendido que a amizade é um tipo de crime, não tipificado por código penal que seja. Mas, demorei para entender como um crime não tipificado tinha prazo para prescrever. E o pior era saber que o juiz a decretar esse prazo era um torpe “Vai saber!”

Pensei bem e vi que a esquina da desolação já tinha ficado para trás (ou para frente visto que o terreno da memória anda de trás para adiante). Logo o veículo entraria na rua da Consolação. Lá, pediria parada e entraria na livraria para comprar um livro e, de ato, uma ajuda.

Comprei o livro. Tudo ficou claro de repente. Mas, uma submemória enxerida quase ofuscou aquele brilho. Era a voz do meu avô dizendo que muita clareza de repente era como pasto para burro que pensa ser trovador...

Mas, inda bem que consegui amordaçar aquela intrusa e mergulhei tranquilamente na clareza. Era justo que minha amiga pensasse que o prazo de validade de nossa amizade aproximava-se do fim.

Eu já havia cumprido aquilo para que tinha sido feito. Fui várias vezes adereço que ela exibia quando queria abalar em alguma festa, fazendo inveja a outras amigas. Ela já tinha me submetido a todas as acareações possíveis, a fim de encontrar o mais de compatibilidades possível entre duas pessoas. Eu já a havia desapontado três vezes. Menti as piores mentiras que se pode mentir: menti a idade, o peso e omiti quem amava. Como uma pessoa, depois de tais mentiras, poderia dizer alguma verdade? Só então entendi o olhar dela que me dizia: "Diga a verdade e depois volte para sua caverna!".

Outra: eu tinha cometido um pecado que faz o prazo de validade decair mais rápido que a vida-útil de uma pedra filosofal vagabunda. Eu a fiz duvidar de que eu era burro. Como uma amizade com prazo de validade pode suportar quando se descobre que o amigo burro não é burro? Só se a inteligência recém-descoberta fosse um adereço complementar a ser exibido por minha amiga às suas outras amigas. Mas, nem isso...

Enquanto eu estava dentro do prazo de validade, quando discordava do que ela dizia era considerado perspicaz, inovador. Mas, próximo de expirar a validade, cada discordância minha soava como um contra-ataque num jogo de esgrima.

O golpe fatal foi quando ela começou a dizer que queria aproveitar comigo tudo quanto fosse possível enquanto era tempo. Senti que logo ela contrataria um véu de silêncio para morar entre nós e como seria difícil a nossas mãos seguirem dadas, tendo de enfrentar aquele deserto de gelo!

Rapidamente, ela começou a tomar todo gesto e palavra meu como um veio de maldição implícita. Eu me tornava podre para ela. Os livros que eu indicava eram tentativas de desestruturar sua psiquê, os sonhos que confessava eram tentativas de roubar dos sonhos dela atalhos para minhas ambições. Os filhos que não tinha eram radiografias de minha despeita incontida pelos filhos que ela haveria de ter... Eu havia me tornado um tropeço para os passos que ela ainda não tinha dado e um efeito retardado de queda para os caminhares que ela já havia perfeito. 

Eu só não compreendo porque enquanto meu prazo de validade se esgotava, eu enxergava minha amiga como um fonte de águas pulsantes que recolhia os prazos à sua própria insignificância e sarava no tempo as feridas da esperança. Meu prazo de validade terminou e eu apodreci, mas minha podridão, por força do que sentia por ela, caía em si mesma e como uma mão de adubo redentor salvava uma semente de luz que estava presa entre destroços.

Era uma luz tênue da qual uma rama saltou num repentino clamor. Esta rama rapidamente se tornou um olhar que nunca se cansava de procurar a perda e o reencontro no rosto de minha amiga. Aquela podridão autofecundada não tardaria em se tornar um olhar de colheitas difíceis, mas gratificantes. Só faltava um olhar recíproco para que chovesse.

Depois, a suposta rua da memória assustou-se, acordou-se e deu-se conta de que era um sonho cujo prazo de validade havia vencido. 

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