14 de outubro de 2011

O requinte do clichê: também e sobretudo!

Foto: Karla Vidal


Não foram somente livros que levei para casa, ao sair da bienal do livro de Recife, ocorrida nos últimos dias de setembro. Foi pra casa comigo a escultura que abre esta postagem. Esta imagem teria passado despercebida não fosse o convite da minha irmã a olhá-la. 

“Descoberta”: o olhar não é somente um evento foto-sensível, mas uma sugestão, um convite. Não parte exclusivamente do eu para o outro: requer que um terceiro elemento, um outro-eu ou um eu-outro, erga-se como ponte, ou, melhor dizendo, como apelo para que o ato de olhar se torne efetivo. Do contrário, o que se tem é a cegueira ilustrada, que acompanha nosso olhar cotidiano e sedentário.

“Cachaça também é cultura” era a frase que, na escultura, fazia o papel de coração.  Um coração cercado e asfixiado por hipérboles com a pretensão metonímica de fazer a parte se tornar o todo: de fazer o ato de beber ser o núcleo vital da pobreza. E, feridas pela hipérbole, pobreza e bebida tornam-se, respectivamente, miséria e vício.

Eis o requinte do clichê. Sua força maior não está na repetição de imagens cansadas, mas sim em habilidades adicionais. Entre elas, a de ferir o sentido com a hipérbole e abanar a ferida com a metonímia, transformando o exagero em normalidade.

Porém, o clichê mais hábil é aquele que dispensa imagens, nutrido de consensos silenciosos e nutridor de uma normalidade sem rosto, literalmente des-carada. È esse tipo de clichê que é denunciado pela expressão “também é cultura”. A ideia da cultura como solo sagrado imune ao vício e à miséria é ironizada pela entrada da cachaça no rol dos bens culturais. 

A palavra “também”, nesse caso, termina por ser um abismo que divide a identidade dos sentidos. Na imagem em questão, “aparecem”, em conflito, sentidos dúbios como, por exemplo: cachaça-culta versus cachaça-viciante, pobreza-multiculturalista versus pobreza-miserável. O “também”, desta forma, tempera o controle fascista do clichê com o descontrole anárquico da ironia.

Numa recente propaganda da Jhonnie Walker, o clichê fere o sentido não com a hipérbole, mas com seu irmão siamês: o eufemismo ou a hipérbole suavizadora. 

Mesmo sem se fazer visível, a palavra “sobretudo” percorre todo o anúncio, no ritmo dos passos do gigante adormecido: personagem principal da micronarrativa. Senti como se a publicidade quisesse vender a ideia de que o Rio de Janeiro é, sobretudo, beleza; não violência.  

O gigante que dormia e, de repente, ganha vida própria, representa o clichê da cultura, entendida como beleza sublime que, como uma força telúrica ou uma essência transcendente, subjaz vitoriosa aos conflitos sociais, eufemismezando-os.

Mas, certamente, não é absurdo ver nos passos do gigante não um “sobretudo”, mas sim um “também” a relativizar o peso que a violência teria na composição da imagem do Rio de Janeiro perante a opinião pública mundial. 

Neste caso, estaria justificada a opção publicitária da Jhonnie Walker. Ao eleger como garota-propaganda o Rio, um lugar dividido entre o encanto da natureza e o desencanto da violência,  a empresa faz da cidade prateleira simbólica de uma bebida cuja imagem se pauta na ideia: “Sou vício, mas, sobretudo, requinte! Sou bebida, mas estou longe de ser cachaça!”.

Mais imagens da Bienal do Livro de Recife no site da Pipa Comunicação.

Um comentário:

  1. Fiz a foto completamente tomada pela inquietação. Tantos preconceitos unidos em tão pouco texto e em tão simples imagem... Ficou o registro para análises.

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...