10 de agosto de 2011

Crítica em laboratório/Sendo culto sem ser erudito

Cartaz de divulgação do Laboratório Cultura e Crítica


“Eles não consomem cinema. Estão diante do filme, mas dividem seus sentidos entre diferentes alvos. Um olho no filme, outro no computador, outro no celular.  E assim os olhos se multiplicam. O tato, o paladar e a audição convertem-se em olhos, contribuindo ainda mais para desfocar a atenção dos que usufruem a arte. Eles estão ali, diante do filme, mas não o consomem”.

O conteúdo entre aspas é uma livre adaptação que faço de um dos comentários da cineasta Alice Gouveia sobre os destinos e os desatinos da 7ª arte. Como toda paráfrase, esta certamente tem uma margem de erro de pelo menos três pontos distorçonais para mais ou para menos.

Foi uma declaração feita durante o Laboratório Cultura e Crítica, que ocorre todos os meses em Recife. No evento, as pessoas debatem sobre cultura e se debatem, tentando livrar-se das armadilhas em que a teia cultural acaba se convertendo. 

É um laboratório, pois permite a ousadia da experimentação nas formas de relacionar comunicador e público. Mas é também laboratório no sentido de nos fazer perceber que a crítica – quando não é criticada – nos torna cobaias, pintando com verniz de reflexão o que muitas vezes não passa de reflexos condicionados pelo impulso de aderir a “opiniões balizadas”. 

É o que, fazendo novamente uso das palavras de Alice Gouveia, pode se chamar da tentação do Apud, vírus que faz o organismo cultural proliferar as células da citação, inibindo a ação das enzimas digestivas da crítica, com seu papel de pôr em crise valores, conceitos e pre-conceitos. 

Neste caminho, Alice propõe uma diferenciação entre o culto e o erudito. O culto se caracteriza por promover, comprometidamente, o diálogo entre vida e expressão simbólica. Já o erudito tem compromisso maior com a referenciação enciclopédica.

O “Eles” a que Alice Gouveia se refere são as crianças e adolescentes imersos na cultura ciberespacial. A análise feita pela cineasta, e também professora do recém-nascido curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco, reproduz a ideia geral de que a relação adequada com a arte deve ser regida pela profundidade e pela atenção, condensadas na concentração, no foco.

Porém, a cultura ciberespacial é multifocal e vem construindo plataformas que permitem darmos contornos estéticos à desatenção. O aprofundamento, antes condicionado pela concentração, pelo gesto de focar – agora é parente do intervalo e da transtextualidade. Se antes, aprofundar-se significava mergulhar num conteúdo, atualmente significa compor esculturas a partir dos retalhos, dos fragmentos que gravitam pelo ciberespaço, incluindo os fragmentos da “realidade presencial”.

O que está em questão na fala de Alice Gouveia não é o mecanismo cognitivo da atual geração, mas sim a interação comprometida com a arte. E o compromisso não tem endereço definido na linha do tempo. A dispersão do contexto cultural contemporâneo quando marcada pelo comprometimento pode nos conduzir a profundezas nunca antes exploradas. 

Neste caso, ser profundo não significa cavalgar sem parar até a linha de chegada dos abismos do conhecimento, mas sim dosar o aprofundamento – a unidade - com as idas à superfície, permitindo-se contaminar pelos estilhaços da dispersão.

Esta dosagem, como acontece ao longo da jornada cultural humana - flerta com o inferno e com a utopia. Mas, é desse momento de crise que se nutrirá o sonho da cineasta de ver a oligarquia dos eruditos ceder espaço para a democracia dos cultos. Sonho que já dá seus primeiros passos, aprendendo a ser realidade por meio do projeto Realizando em 1 minuto. Neste projeto, o convite de Godard  - “quer fazer um filme? pegue uma câmera!” - é reformulado por Alice Gouveia.

Ela oferece oficinas de cinema, ensinando jovens sem verba para fazer cinema, a produzir curtas-metragens de qualidade, tendo a mão simplesmente um celular ou uma câmera digital. Talvez, sem perceber, Alice Gouveia ajuda a converter a dispersão da cultura contemporânea em arte, optando pela vertente do culto em lugar da vertente da erudição.


Laboratório Crítica e Cultura #3 (parte 1)

Um dos curtas do projeto Realizando em 1 minuto

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