19 de maio de 2011

Sobre a realidade, a desrealidade e Fredric Jameson

Por Alan Gut

 A desrealização, vertigem causada pela sensação de estarmos vivendo num mundo sem realidade é apontada por Jameson (1996) como um dos fatores da atmosfera pós-moderna. Mas como destaca este autor, o mundo já era vivenciado de forma desrealizada antes dos apelos pós-modernistas, visto que o conceito de desrealidade é desenhado por Heidegger. E tal sensação, destaca Jameson, não deixa de ser herdeira de outra mais antiga. Refiro-me à noção kantiana de sublime ou da mistura de encantamento e terror diante daquilo que a razão humana não é capaz de compreender. 

Fredric Jameson

Se formos mais a fundo, como o próprio Jameson faz, a impossibilidade de um mundo real é formulada por Platão, visto que para ele o real literalmente repousa na imperecibilidade e imutabilidade da Ideia, neologismo cunhado para dar forma a um paradoxo: o da referência a um espaço-tempo que não pode ser alcançado pelas garras do espaço e do tempo.

Reforçam esta atmosfera de desrealização, as teorias lingüísticas de cuja cepa é o pensamento de Saussure (2011), postulando que existe um abismo entre palavras e coisas: o da arbitrariedade. Entenda-se arbitrariedade não como sendo relacionada ao que Benjamin (1986) chama de ad libitum (ao bel prazer), mas como a noção de que coisas e palavras deixam de ter uma conexão necessária e absoluta, tendo, em verdade, uma conexão pautada pela busca da conexão, isto é: o código.

Ironicamente, Saussure sendo filho do século XIX, no qual houve primazia do positivismo com seu império dos sentidos domesticados em detrimento do desgoverno do imaginário, defende que a linguagem não é devedora de uma realidade que a antecede e agrilhoa. A realidade deixa, então, de ser vista como monólogo, no qual a linguagem serve apenas de figurino. Realidade passa a ser, direta ou indiretamente, concebida como diálogo tenso e inconcluso entre palavra e coisa, entre significante e significado, entre sintagma e paradigma.

Saussure reacende a potência que o positivismo havia adormecido no real. Se, para a escola positivista, real é aquilo diante do qual o imaginário sucumbe e os sentidos se rendem, na vertente saussureana, o real é a potência gerada pelo descompasso entre coisas e ideias. Nesta vertente, inscrevem-se pensadores como Roland Barthes (2004) para quem o real passa a ser visto como um efeito discursivo dentre outros efeitos possíveis. Mas, o mesmo Barthes, ao refletir sobre o caráter do real, atribui-lhe como elemento caracterizador a violência. Seria real o choque, a violência que emudece, a espada de dor que silencia a palavra.

Este real, visto como lócus da impotência - ou, usando uma imagem de Zizek (2003), como deserto ou o lugar da total nudez, não mais a nudez da inocência do Éden, mas a nudez do desamparo – acaba por se aproximar da vertigem da desrealização.

Pode-se derivar também uma reflexão sobre o estatuto da realidade subjacente à discussão de Lukácks sobre a passagem das culturas fechadas da antiguidade e da Idade Média para as culturas abertas correspondentes ao impulso racionalista e seus desdobramentos ao longo da modernidade. 

Para Lukácks (2000, p. 45), nas culturas fechadas não havia lugar para uma oposição entre real e imaginário, visto que nelas “o transcendente está indissoluvelmente mesclado à existência terrena”. Neste tipo de cultura, imanência e transcendência conspiram unidos para que o mundo seja a medida do homem.

Nas culturas abertas, o mundo deixa de caber na alma humana ou, por outro lado, a alma deixa de caber no mundo. Isto torna possível a entrada em jogo da noção de realidade como a tentativa constantemente alimentada e inevitavelmente malograda de tornar o mundo a medida humana. Com base na tipologia que Lukácks constrói para dar conta de como a relação de medida entre a alma e o mundo ganha forma histórica no romance, pode-se depreender uma tipologia para compreender a noção de real, conforme o ponto de vista moderno.  Neste texto, contudo, não vamos refletir sobre os fatores que medeiam a relação de medida entre alma e mundo.

Primeiramente, pode-se entender o real como o efeito causado pela alma cuja medida é menor que o mundo: ‘O demonismo do estreitamento da alma é o demonismo do idealismo abstrato. É a mentalidade que tem de tomar o caminho reto e direto para a realização do ideal”(Lukácks, 2003 p. 100).

Não nos enganemos. Quando o mundo é maior que a alma, a realidade se mostra como algo a-problemático. A problemática da existência, nesse caso, refugia-se no que os herdeiros do século das luzes chamam de mundo da imaginação. Quando o mundo é maior que a alma, os limites entre loucura e razão são claros e precisos: o que não torna claras e precisas nem a razão nem a loucura. 

A outra forma de conceber a relação de desmedida entre alma e mundo é pensando a alma como sendo maior que o mundo.  Neste caso, a realidade é encarada como próxima da mesquinharia. O realista, neste caminho, é um desiludido, pois acredita trazer em si toda a matéria-prima necessária para que o mundo seja sua medida. Mas, infeliz ou felizmente, o mundo não coopera com ele.

Em sendo assim, a realidade da alma megalomaníaca é tão real que não consegue se refletir na realidade amesquinhada do mundo. O que se cheira, se vê, se toca, oscila entre o caráter palpável da ousadia ambiciosa do vir-a-ser e o caráter igualmente palpável da frustração antecipada do ser. Quando a alma é maior que o mundo, tudo é palpável, seja por falta seja por excesso, seja por mesquinharia seja por megalomania.

A terceira via derivada da teoria de Lukácks é a via da reconciliação. A fim de tornar-se medida do mundo, a alma resignifica a mesquinharia da realidade do mundo, ao mesmo tempo que empresta humildade a sua própria megalomania. Visto de outra forma, de forma mais próxima à primeira opção posta por Lukáks, a alma amplia sua participação problematizadora e o mundo, assim, torna-se menor, roubando da realidade uma parcela da normalidade e da calmaria características da relação em que o mundo é maior que a alma:

“De um lado, portanto, essa interioridade é um idealismo mais amplo e que se tornou com isso mais brando, mais flexível e mais concreto e, de outro, uma expansão da alma que quer gozar a vida, agindo, intervindo na realidade, e não, contemplativamente ” (Lukácks, 2003 p. 139).

Este “caminho do meio” em que se procura lapidar a alma e o mundo, podando os excessos do idealismo abstrato e do positivismo parece encontrar forma na estratégia da metaficção, entendida como fazer artístico em que a ficção pensa sobre  si mesma e “se descobre menos diversão do que um escudo contra as ameaças externas e internas, obrigando-nos a narrar uma luta interminável: o drama que nos constitui” (Bernardo, 2010, p. 20).

Continua... 

Obras consultadas
BERNARDO, Gustavo. O Livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo ou a lógica cultural do
capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.
LUKÁCKS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 2000.
SAUSSURE, Ferdinand de; Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix,2011.

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