25 de janeiro de 2011

Feridas de Narciso e a ilusão da alma

Narciso after Caravaggio - Vik Muniz





Há séculos, a humanidade está adaptada à revolução copernicana. Mesmo assim , continuamos empregando a metáfora de que o sol nasce e se põe, fazendo de conta que a Terra é o palco estático onde, ao longo das horas, o sol dança em êxtase o balé do dia.

A persistência dessa metáfora é sintoma do que Freud chama de feridas de Narciso, em referência ao mito do rapaz que ao olhar sua imagem refletida na limpidez de um lago, apaixona-se por si mesmo e ao tentar se abraçar cai nos braços do afogamento.

Inconscientemente, o ser humano não teria se conformado com o fato de a Terra – macro-expressão de sua própria individualidade - não ser o centro de atenção do cosmos. Por esta razão, persistiria a metáfora do nascer e do pôr do sol: como um tipo de torniquete, que tenta estancar a hemorragia de nossa tendência narcísica de ser o centro, de não conseguir desvincular nossas reflexões do eu: do quintal, do umbigo.

Uma tendência dos estudos neurocientíficos, chamada de fisicalismo, está preparando o terreno para o florescimento de uma nova ferida narcísica. De acordo com o fisicalismo, o que eu sinto ou o que penso deixam de ser o centro do sistema solar de minhas atitudes. O centro passa a ser o cérebro com sua arquitetura de sinapses neuronais.

Desta forma, o agir não é devedor do pensar ou do sentir ou de valores que nos transcendem ou habitam uma alma insondável existente no interior das pessoas. As diferentes arquiteturas de conexões das células cerebrais seriam a verdadeira fonte do agir, sendo o pensar uma pálida imagem, um subproduto da engenharia elétrica cerebral.

Roubado do chão da crença numa alma imortal - de valores eternos e transcendentes que pautam suas decisões - o ser humano estaria sujeito a uma nova e fatal ferida narcísica, a da perda do próprio eu. Se a consciência corresponde a uma determinada arquitetura cerebral, novos arranjos do mapa de estímulos às regiões cerebrais poderiam ser desenvolvidos. Não seria estranho prever a criação de tecnologias de edificação ou desmoronamento de “eus”.

Mas, como dirá Eduardo Giannetti, grande difusor do fisicalismo no Brasil, a proposta desta corrente teórica não é atirar à queima-roupa na transcendência, na alma, na mente ou no sentimento. O mistério da alma, segundo ele, torna-se ainda mais misterioso com o advento do fisicalismo. Isto ocorre porque as certezas que costumamos ter sobre a alma e a eternidade, recorrendo a estas noções a fim de lastrear preconceitos e perenizar condutas, deixam de ser certas. Essa reflexão é um dos centros do livro A ilusão da alma: biografia de uma ideia fixa (Companhia das Letras), de Giannetti.


O mistério, nesse sentido, deixa de ser asfixiado pelo hábito e reacende importantes questionamentos, a exemplo de “O meu agir deve ser fruto exclusivamente do que sinto?” ou “ Qual o conceito de eterno ao qual vinculamos a fé, a esperança e o amor?”

O espelho, descrito por São Paulo na primeira carta aos Coríntios (capítulo 13), torna-se ainda mais confuso. Mas, estranhamente, a confusão pode nos ajudar a ter melhor clareza quando substitui certezas esclerosadas que um deturpado romantismo vincula a vozes ditatoriais que, muitas vezes, fazemos coincidir com a noção de alma.

Espero que o fisicalismo possa contribuir para que humanidade futura rompa com determinismos e  inquisições que, plantadas em irrefletidos conceitos de alma, convertem a própria capacidade de refletir em uma espécie de bruxa a ser caçada pelos tribunais de insidiosas certezas: tanto religiosas quanto científicas.

E também espero que apelos eugenistas ou frankensteineanos não tomem conta do fisicalismo.

A ilusão da alma, menos do que afirmar que a alma é uma ilusão, indiretamente fala sobre as ilusões que a alma enfrenta. O sentimento e o pensamento podem ser fruto de conexões neuronais, mas o ser – a síntese inquieta entre corpo, alma e divindade - não pode ser reduzido a nenhum tipo de conexão seja de ordem física ou de ordem espiritual. Esta é a ilusão da alma com a qual precisamos não brigar, mas sim conversar constantemente, tentando depurar a tendência humana de misturar mistério, boa-vontade, certeza, emancipação e tirania.

A imagem que abre esta postagem foi encontrada no blog  A redenção da alma, que cria pontes entre as artes, as ciências e o pensamento de Jung.

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